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Número 4 - Agosto 2001
O complexo do próximo na constitução do Eu
e como fonte originária dos motivos morais
Alayde María Ferreira Martins

 

Através da leitura do Projeto (Freud, 1995-1895) 1 procurarei fazer uma aproximação do Complexo de Nebenmensch/Complexo do Próximo com a teorização lacaniana a partir do " Estágio do Espelho como Formador da Função do Eu" . (Lacan, 1998, p.100)2

Do texto do Projeto darei prioridade ao que Freud estabelece como o processo de introdução do eu a partir de sua função de inibição dos processos primários de satisfação e de dor. Ou seja: tanto de dirigir a ação, chamada ‘ação específica’, que só poderá ser realizada mediante a ajuda alheia (do próximo, do semelhante) e que visa a evitar a repetição da vivência de satisfação por alucinação do objeto no estado de desejo e o conseqüente desprazer daí decorrente, assim como manter sob recalque (mantendo isoladas) as representações que estejam associadas à vivência primária de dor.

Meu objetivo é, primeiramente, reconhecer na articulação freudiana o papel do Outro no Complexo de Nebenmensch e este como representante do Outro, lugar da linguagem, na constituição do eu-função no Projeto. Em seguida, procurarei desenvolver a questão desta constituição ser para Freud "a fonte originária de todos os motivos morais" (Freud, 1995-1895, p. 32)3 e da relação com a moral e o desejo.

 

O Complexo de Nebenmensch ( der Nebenmensch – próximo ) 3 no "Projeto de uma Psicologia" de Freud e o outro como representante do Outro na constituição do sujeito.

No começo da Psicanálise está, entre outras elaborações freudianas, o Projeto que, assim como tantas , são palavras dirigidas a Fliess. Aquele que, sendo Outro para Freud, recebeu deste os esboços da Psicanálise. Enviado em sua correspondência a Fliess, o texto não retorna a Freud que, sabe-se, tinha por hábito destruir seus manuscritos. Esse, no entanto, confiado a Fliess , não é destruído e retorna publicado onze anos após a morte de seu autor. Embora os psicanalistas reconheçam a importância capital desse escrito, é fato que seu estudo é suportado por poucos.

Ao fazermos no Cartel a leitura do Projeto, seguimos nisso Lacan, isto é, fomos insuflados pela sua insistente indicação desta leitura aos "trabalhadores decididos da Psicanálise". O Cartel foi iniciado pelo Seminário 2 de Lacan, "O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise" dos anos de 1954-1955.(Lacan, 1985).4 Ao voltarmos aos textos de Freud a partir da indicação que Lacan faz nesse Seminário relemos o texto do Mais além do Princípio do Prazer e depois deste nos dedicamos, até o término do cartel, à leitura do Projeto. Assim, pudemos encontrar o esboço de conceitos fundamentais da Psicanálise no Projeto, tais como o de princípio do prazer, de princípio de inércia, recalque/ defesa, deslocamento, investimento, representação, traço (de memória), a Coisa (das-Ding), experiência de satisfação, dor e desprazer. Ali estão conceitos que seriam desenvolvidos e/ou resgatados nos mais de quarenta anos seguintes. Entre todos destaco a formulação de Freud sobre o Complexo de Nebenmensch devido ao estado de desamparo do organismo . Freud dirá no Projeto que na formação e desenvolvimento do eu é da maior importância a busca da semelhança, marcada atentamente pelo grito/voz daquele que está em estado de precisão e o outro que virá em seu auxílio.

O Complexo do Nebenmensch procura demonstrar de que forma o desamparo inicial dos seres humanos torna necessária a ação de um semelhante e aliena-nos na dependência a um outro, pois, submetidos ao Outro, dependemos da linguagem. Para realizar a ação específica, o organismo humano necessita da ajuda alheia, "na medida em que, através da eliminação pelo caminho da alteração interna, um indivíduo experiente atenta para o estado da criança. Esta via de eliminação passa a ter, assim, a função secundária, da mais alta importância, de comunicação, e o desamparo inicial do ser humano é a fonte originária de todos os motivos morais. "(Freud, 1995-1895, p.32)5

Desse outro, agente da ajuda alheia, temos apenas a possibilidade de reencontrar o que foi fixado pelas representações a partir de sua marca. Essa fixação é feita desde um funcionamento que se dá pela simultaneidade e ligação entre o motor o e o lingüístico. No Projeto, Freud não fala ainda de um aparelho psíquico, mas podemos reconhecê-lo quando, na dinâmica de sua regulação por um princípio de constância, faz-se necessário o surgimento de uma função, que Freud nomeia "eu", e que estabelece como sendo a de desviar o curso de Q’ por ocupações colaterais, transformando quantidade de energia em complexidade, isto é, facilitações/trilhamentos (Bahnung) feitas a partir da lei da simultaneidade. Ou seja: inibir os processos psíquicos primários que são atração primária - pela imagem recordativa do objeto de desejo e recalque primário - repulsa a manter ocupada a imagem recordativa do objeto hostil.

É possível pensar esse eu–função aproximando-o de um rudimento, da inscrição de uma marca que permitirá, a posteriori, a projeção da imagem do semelhante na imagem semelhante. Embora esse eu-função seja inconsciente, sua formação a partir do outro permite pensá-lo como matriz das identificações do eu e submetido à relação simbólica que, por anterioridade lógica , faz do objeto a causa da constituição do sujeito do inconsciente. Lendo isso no Projeto, podemos dizer: faz do grito a marca da Coisa no ser. O grito é rudimento da fala , e é o que faz com que a marca do semelhante, do outro, do objeto, da Coisa, fixe-se no núcleo de , fazendo assim com que o eu se constitua a partir do Outro, e de forma que o mais íntimo seja ‘ extimo’.

O que Freud sustenta é que a fala mais rudimentar, o grito, fixa um determinado trilhamento, (memória, pensamento) que liga o lingüístico e o motor:

" Ora, pode ocorrer que durante o curso de Q’ também seja ocupado um neurônio motor que, então, eliminaria Q’ e forneceria um signo de qualidade. Contudo se trata, nesse caso, de obter, de todas as ocupações, estas eliminações . Elas não são todas motoras, por conseguinte, para esse objetivo, elas têm de ser colocadas em uma facilitação segura com neurônios motores.
A associação lingüística realiza esse objetivo. Ela consiste na ligação de neurônios com neurônios que servem às representações acústicas, e elas mesmas têm a associação mais íntima com imagens motoras lingüisticas. Estas associações levam vantagem sobre as outras em dois caracteres: são fechadas (pouco numerosas) e exclusivas. A partir da imagem acústica, a excitação chega, sem dúvida, à imagem de palavra e desta à eliminação"6 (Freud, 1995-1895, p.79)

O Nebenmensch,o semelhante, o próximo, o único a poder auxiliar, é o primeiro objeto de satisfação e o primeiro objeto hostil. Através da semelhança, isto é, do não idêntico, o eu aprenderá a se reconhecer no outro, no semelhante, ao mesmo tempo em que aprenderá a reconhecer o semelhante. A agressividade germinará daí como necessidade de se sobrepor a esse outro que ao mesmo tempo ameaça e anima sua existência.

 

O Eu e o Outro a partir do Estádio do Espelho

" Ontem à noite, depois da exposição de Lang, Lefèbre-Pontalis endereçava a vocês todos a observação seguinte – quanto ao estádio do espelho, seria preciso disciplinar-se.
Seu reparo tem meu assentimento no sentido de que não se deve fazer dele um uso abusivo. O estádio do espelho não é a palavra mágica. Já está meio antiquado. Tem uns vinte anos, pois saí-me com ele em 1936. Está começando a dar comichão neste precisar renovar, que nem sempre é o melhor, pois para progredir é preciso saber retomar as coisas. O que é chato não é tanto o fato de repeti-lo, porém de mal empregá-lo." (Lacan,1985, p.134)7

Das elaborações de Lacan algumas são repetidas à exaustão. Dentre essas, está a do Estádio do Espelho. Então, repetindo ainda, mas procurando ser breve.

No "Estádio do espelho como formador do eu"8 Lacan apresenta esse estado de desamparo e de imaturidade com argumentos neurológicos, e etológicos:

" Mas essa relação com a natureza é alterada, no homem, por uma certa deiscência do organismo em seu seio, por uma Discórdia primordial que é traída pelos sinais de mal-estar e falta de coordenação motora dos meses neonatais. A noção objetiva do inacabamento anatômico do sistema piramidal, bem como de certos resíduos humorais do organismo materno, confirma a visão que formulamos como o dado de uma verdadeira prematuração específica do nascimento no homem.
Observe-se de passagem que esse dado é reconhecido como tal pelos embriologistas através do termo fetalização, para determinar a prevalência dos chamados aparelhos superiores do neuroeixo e, em especial, desse córtex que as intervenções psicocirúrgicas nos levarão a conceber como o espelho intra-orgânico".9 (Lacan, 1998, p.100)

Lacan coloca o espelho entre o ser e seu semelhante, espaço imaginário onde o outro permite a identificação a sua imagem; o infans é capaz de, ao ver a imagem projetada na superfície especular, precipitar-se nessa imagem que lhe diz ao mesmo tempo que ele é igual ao objeto/outro especular , e diferente do que ele sente dele mesmo como fragmentado . "Impulso que vai da insuficiência a antecipação." 10 (Lacan, 1998, p. 100). O imaginário dá consistência ao real do corpo.

Essa amarração, no entanto, só se dará pela linguagem, pela palavra, pelo simbólico; pois esse espelho é também metáfora do Outro da linguagem, que permite que o eu se precipite na crença de que sua imagem lhe garante sua existência. Desde que falado por um Outro, pode identificar-se a esse que guarda pelo discurso desse Outro o lugar de inscrição em seu desejo. Desse modo o eu se identifica na imagem nomeada enquanto outro mas que lhe abrirá a possibilidade de dizer: eu, fulano de tal. O simbólico sustenta o imaginário.

Mas nem tudo é especularizável. Aquilo que denunciaria a dissimetria entre imagem especular e o ser do sujeito, é indicado nesse texto pelas sensações proprioceptivas. O real do corpo , que não se inscreve na imagem e nem se diz em nenhum nome. Lacan dirá que é o olhar do Outro ao confirmar para a criança o reflexo especular com o nome dela, o que fixa a identificação do ser a essa imagem . O eu se constitui a partir do lugar da falta do Outro, no desejo do Outro, na fala do Outro, que nomeia o infans no lugar do objeto desse desejo. Esse olhar que reconheceu o infans como um semelhante e o alienou no desejo que o constituiu, o objeto desse olhar, está indicado aqui enquanto esse real que é não-inscrito nesse processo de projeção/identificação. Assim, o eu se constitui na identificação como uma imagem ideal, que comporta o ideal do Outro, sua falta, isso é, seu desejo. O x do desejo do Outro que virá a ser significado no falo, que comparecerá no lugar da falta, é enigma que se lança na questão: ‘O que eu sou no desejo do Outro?’

 

O Complexo de Nebenmensch e a identificação com o semelhante na constituição do sujeito do desejo

No Seminário 7, de1959-1960, Lacan dirá

" que é por intermédio do Nebenmensch, como sujeito falante, que tudo o que se refere aos processos de pensamento pode tomar forma na subjetividade do sujeito."11(Lacan, 1988, pg.53)

No estado de desejo, o organismo terá de saber se está diante da representação da imagem recordativa do objeto superinvestida ou se está diante da representação da imagem do objeto percebida, pois o investimento da primeira com o conseqüente aumento de tensão gera desprazer. Ainda terá de criar um mecanismo que impeça que a imagem do objeto, que gerou desprazer, cause a mesma inundação de energia que o acontecimento que causou dor. Porque dor e desprazer serão semelhantes para , que não reconhece qualidade, mas quantidade de energia. (Lembrando que notícia de eliminação em é signo de qualidade-realidade para ). Essa eliminação também estará ligada ao lingüistico , pois, assim como a da vivência de dor, também foi acompanhada do grito. Lembremos que Freud chamará de atração de desejo primária a atração pela imagem recordativa do objeto e de defesa ou recalque primário (Verdrängung) o do afeto, a repulsa a manter ocupada a imagem recordativa hostil.

" Os restos de ambos os tipos de vivências que tratamos são os afetos e os estados de desejo; é comum a ambos conter um aumento de tensão de Q’ em , que se produz no afeto através de uma liberação imediata, no desejo através de somação." 12( Freud, 1995-1895, p.35)

O eu do Projeto é uma organização de neurônios constantemente investidos no interior de que poupa o organismo de um aumento e descarga de Q’ desnecessários, inibindo os processos psíquicos primários. Em relação ao desejo, o organismo terá de aprender a diferenciar entre recordação e percepção comparando os complexos perceptivos. Estes, por sua vez, decompõem-se em uma parte que nunca muda, a Coisa (das-Ding) e em uma parte variável, seu predicado (atributos). Será preciso descobrir a semelhança entre o núcleo do eu (a Coisa) e as ocupações mutáveis do manto (componente inconstante). A inibição do eu ( feita pelo eu) ao desviar o curso de Q’ em busca da meta dá início ao julgar que só é possível devido "a dessemelhança entre a ocupação de desejo de uma[ imagem] re[cordativa]e a ocupação perceptiva que lhe é semelhante".13 (Freud, 1985-1895, p.42). A identidade dá direito de eliminação, e essa é a meta; aquilo que é coincidente entre ambas as ocupações torna-se um sinal para terminar a ação de pensar e para permitir a eliminação. O organismo, com a introdução do eu, instala o processo secundário, o pensamento . O desejo se torna pensamento sobre o desejo, como Lacan diz no Seminário 8.14

"Assim termina o projeto do poeta. Ele nos mostra, depois dos dramas dos sujeitos como puras vítimas do logos, da linguagem, o que se torna o desejo. E para isso, o desejo nos é tornado visível por ele na figura da mulher, desse terrível sujeito que é Pensée de Coûfontaine.
Ela merece seu nome, Pensamento, ela é pensamento sobre o desejo."

O sujeito se constitui a partir do lugar da falta no Outro. Já comparecendo o outro aí como Outro simbólico, na medida em que é aí que a fala mais rudimentar, o grito, o apelo, fará de seu desejo, isto é daquilo que lhe falta, a sua submissão ao desejo do Outro, isto é , ser escutado e atendido naquilo que a falta é significada pelo outro na fala do Outro.

Não há um sem o Outro. Não há nenhuma possibilidade de ser sujeito sem estar identificado ao semelhante, e de se inscrever no mundo a partir dessa relação de dependência ao semelhante. Inscrição que, no entanto ,só é possível porque há desejo. Dizer que o grito é escutado como apelo é sustentar que somos seres de linguagem, que o desejo introduz o sujeito no circuito da demanda.

O outro primordial, objeto ao mesmo tempo de desejo e hostil, é representado pela mãe. E é com ela que o infans estabelece esse primeiro momento que determinará a constituição de um aparelho psíquico, ou dizendo de outra maneira, que fará com que o infans dê de sua parte um primeiro assentimento a sua submissão à linguagem. A mãe representa o outro objetificado, das-Ding, objeto desde sempre perdido, aquilo que, sendo o mais íntimo, é também exterior ao sujeito. Mas também representa, simultaneamente, o Outro simbólico, no que a ação específica é necessária e só se realizará a partir do grito como convocação a sua execução, isto é, a partir de um Outro que identifique o grito como apelo convocando sua falta e, submetendo-se a essa demanda, represente o Outro da linguagem.

O desenvolvimento dessa teorização desembocará no desdobramento do Complexo do Próximo no Complexo de Édipo e na necessidade do Complexo de Castração, como possibilidade de separação entre o sujeito objetificado como falo imaginário e o outro para quem se pretende ocupar esse lugar de falo. Do Complexo de Édipo ao Complexo de Castração encontraremos a passagem do lugar de objeto de desejo do Outro materno à subjetivação através de uma inscrição no simbólico, isto é, submissão à Lei de interdição do incesto. O advento do sujeito do inconsciente, sujeito da linguagem, sujeito do desejo, é possível graças ao surgimento de um elemento terceiro, na verdade quarto, contando-se o falo como terceiro, que vem interditar a relação mãe-criança e indicar um lugar mais além. Isso é, que há falta na mãe e que a criança não sustenta como objeto fálico a possibilidade de ser o que tampona essa falta. O desejo da mãe, sua castração, a falta de um significante no Outro que diga o que o sujeito é em seu desejo, é simbolizada como o falo, que em sua inscrição imaginária o pai enquanto lugar sustenta e enquanto função simbólica encarna como Nome-do-Pai. O Complexo de Castração, é necessário para o advento do sujeito do desejo e sua necessidade se justifica desde o Complexo de Nebenmensch, pois a relação de dependência, de transitividade mãe-infans, de colamento impossível com o outro, está marcada, inscrita, no surgimento desse eu-rudimentar e confirmamos isso em Freud, no Projeto, pela voz, pelo grito, pelo fato de sermos seres de linguagem; essa marca é a inscrição da impossibilidade de encontro com o objeto e de sua incessante busca. Simbolizar a ausência de pênis na mãe como falta, simbolizar a falta na mãe como falo, e todos os percursos possíveis a partir daí, são caminhos que permitirão ao sujeito advir como sujeito do desejo.

 

Lei/Desejo x Culpa /Gozo

" Ai/ Como dizia meu pai/ a dor é mãe"15

Chamou-me atenção no Projeto a seguinte frase de Freud quando postula a necessidade da ajuda alheia para a execução da ação específica:

"Esta via de eliminação 4passa a ter, assim, a função secundária, da mais alta importância, de comunicação, e o desamparo inicial do ser humano é a fonte originária de todos os motivos morais.16(Freud, 1995-1895, p.32)

Para finalizar, então, vou procurar aproximar a afirmação de Freud no Projeto, de que a vivência inscrita a partir do grito no Complexo do Próximo é matriz de todos os motivos morais, com algumas questões relativas à ação moral e ao desejo. A falta, lembremos, é marcada pela impossibilidade de reencontrar das-Ding, mas sempre guiar-se por essa marca para , através de seus atributos, poder se descarregar de Q’ quando no estado de desejo.

Porque o eu-pensamento se constituirá por associação e simultaneidade, essa marca primeira da vivência satisfação deve estar associada à marca primeira da vivência de dor. Ambas míticas porque inaugurais, porque enquanto vivências são a marca anterior do que teria posto em funcionamento o aparelho psíquico, pelo eu-função .

O objeto hostil, que se inscreve também pelo Complexo do Próximo, está colocado desde a origem, quer na busca de das-Ding, quer na evitação da dor-desprazer. E segundo Freud, a dor é anterior ao desejo. Ele nos diz no Projeto que é o grito, rudimento da fala, que aproxima o objeto da vivência de satisfação do objeto hostil. A ligação entre o desprazer que o organismo experimenta quando diante da imagem recordativa do objeto superinvestida (alucinada) e a revivência de dor, se dá através da voz, marca da semelhança entre o sujeito e o objeto, entre o objeto causa do desejo e o objeto que causou a dor.

Fazendo um breve resumo da revivência de dor temos: 1º) imagem do objeto de dor (igual à vivência); 2º) aumento de Q no corpo; 3º) neurônios-chave em transmitem essa Q sob forma de estímulo para nas trilhas de condução endógena; 4º) esses estímulos produzem Q’ (endógena); 5º) esses neurônios-chave conservam uma facilitação excelente com a imagem recordativa do objeto a partir da vivência de dor; 6º) assim há liberação de Q’ (desprazer) na vivência da reprodução da dor.

Evitação da dor e busca do objeto se aproximam em sua inscrição, pela linguagem, no aparelho psíquico.

O que Freud está dizendo do grito? Que ele faz marca ao se associar indelevelmente à presença do outro (semelhante-alheio) como necessário ao descarregamento de Q’. Está dizendo também que ele está presente fixando na experiência com o semelhante a primeira vivência de dor. O outro, seu grito e o grito dele mesmo aproximam o objeto que causa o desejo (vivência de satisfação) e o objeto recalcado pela defesa na vivência de dor. Como vimos, é função do eu no Projeto manter o recalque sobre a imagem recordativa do objeto hostil.

As experiências de desprazer poderão se associar nestas vivências originais. A dor do outro e a própria dor estão marcadas pelo mesmo grito (o próprio e o alheio). No início sem distinção, porque o grito do semelhante foi a via por onde se reconheceu seu grito como seu próprio grito.

"Outras percepções do objeto ainda, por exemplo quando ele grita, despertarão a recordação do próprio grito e com isso de vivências próprias de dor. E, assim, o complexo do próximo divide-se em dois elementos, um dos quais impressiona por sua estrutura constante e permanece reunido como coisa enquanto que o outro é compreendido através do trabalho recordativo, ou seja, enquanto pode ser rastreado até uma notícia do próprio corpo."17 (Freud, 1985-1895, p.45)

Quando Freud nomeia como afeto a repetição da vivência de dor, podemos ver a ação do recalque em relação a uma experiência anterior de grande quantidade de energia gerando desprazer, de modo a reduzir a quantidade de energia investida quando da repetição da vivência. Vemos que o recalque se faz sobre uma marca, uma representação.

Anterior à formação do supereu, essa irrupção de desprazer e o recalque daí decorrente pode ser aproximado ao recalque originário, já que fixa uma representação, mantendo sua inscrição no inconsciente. Comparemos com o que Freud escreve em "Inibições, Sintomas e Ansiedade":

"Seja como for, as primeiras irrupções de ansiedade, que são de natureza muito intensa, ocorrem antes de o superego tornar-se diferenciado. É altamente provável que as causas precipitantes imediatas das repressões primitivas sejam fatores quantitativos , tais como uma força excessiva de excitação e o rompimento do escudo protetor contra estímulos." 18(Freud, 1926,ps 115 e 116).

Esse afeto de desprazer na proximidade de das-Ding também pode ser aproximado da angústia, bem como o seu mecanismo de funcionamento, através de um sinal que poupa o organismo da invasão de grandes quantidades de energia, pode ser aproximado do sinal de angústia.

Podemos supor a referência à dor também enquanto dor psíquica. Os sentimentos de pena, de compaixão, de vergonha, estão marcados, desde o início, pela relação do sujeito ao outro; relação de transitividade que se constitui a partir desse outro e na qual o afeto pode estar dirigido tanto para o outro como para ele mesmo.

Sendo das-Ding o incompreensível, o impossível de dizer, de se reencontrar, é a propriedade da Coisa que permite qualquer encontro. Freud nos diz que, se o desejo se inscreve e é a mola do funcionamento do aparelho psíquico, é porque a busca pela identidade só é possível pela semelhança. E que uma vez inscrita a marca da Coisa, sua busca se repetirá quer pelo pensamento, quer pela alucinação. Não resta ao organismo possibilidade que não seja a de fazer o circuito da repetição .

Se pensarmos, com Lacan, essa Coisa , das-Ding, como o objeto a, objeto causa de desejo, podemos articular esse reencontro impossível como o gozo. Então podemos dizer que o desejo, ao se dirigir à busca do objeto na repetição pela via do pensamento, ao fixar irremediavelmente a dependência do ser à linguagem, barra o gozo. O princípio da realidade faz do adiamento uma possibilidade de busca do objeto através de seus predicados e a realização metonímica do desejo é a repetição do caminho dos atributos de das-Ding. Repetição que torna possível ao sujeito da linguagem o acesso aos objetos metonímicos do desejo.

O gozo, entendido aqui, então, como a completude mítica com a mãe enquanto a Coisa, (das-Ding), está perdido desde sempre. E podemos ver isso na teorização de Freud que reparte a primeira vivência com o próximo em duas partes.

"...os complexos perceptuais separam-se em uma parte constante, incompreensível, a coisa, e uma variável compreensível, a propriedade ou movimento da coisa." 19(Freud, 1995-1895, p.98)

Posteriormente, na teorização do Complexo de Édipo- Castração vemos que o Nome-do-Pai indicará para o sujeito um lugar em relação ao desejo, interditando a relação mãe-criança e apontando para o mais-além do desejo materno. A Lei que o pai sustenta é Lei-Desejo, que interdita o incesto e recobre com a proibição o impossível do gozo.

A ação moral recobre o impossível reencontro do objeto . Através de uma interdição é recoberta uma impossibilidade. O ‘não-pode’ interditando a mãe indica em relação à moral uma proibição, mas em relação ao objeto, uma impossibilidade. Pensamos aqui na tese de Lacan "de que a lei moral, o mandamento moral, a presença da instância moral, é aquilo por meio do qual, em nossa atividade enquanto estruturada pelo simbólico, se presentifica o real – o real como tal, o peso do real".20 (Lacan, 1988, P.31)

O supereu, formado das renúncias pulsionais e identificações do eu, irá apoiar-se tanto naquela primeira vivência de dor quanto na de satisfação, onde o objeto de satisfação se aproxima, pelo grito, também ao objeto hostil ; onde o eu só se inscreve pela perda do objeto e a marca que guia sua busca; onde o recalque é o não re-investimento , o isolamento, do que ficou marcado pela vivência de dor como objeto hostil.

Freud dirá que a consciência moral surgirá mediante a dessexualização do Complexo de Édipo. "O supereu é o herdeiro do Complexo de Édipo." Isso quer dizer que, além de sustentar a interdição do incesto, ele guarda as identificações que foram feitas a partir da perda do objeto. "Ele é o veículo do ideal do ego." "Guarda a rigidez e a severidade da interdição e isso mesmo que os pais não o tenham sido."21

A formação do supereu, então, guardará tanto essa interdição quanto a indicação desse objeto, das-Ding, aquele que causa o desejo, como objeto de gozo. Sua rigidez está diretamente ligada a ameaça que o sujeito sente de vir a fracassar na manutenção dessa interdição. Das-Ding, parte imutável no núcleo de guarda ao mesmo tempo a marca do que será buscado no objeto pelo desejo e do que será impossível de ser alcançado na sua busca; o que resta como falta em cada encontro, isto é, o que faz de cada reencontro um encontro faltoso.

"É nesse ponto que quero detê-los. O que encontramos na lei do incesto situa-se como tal no nível da relação inconsciente com das Ding, a Coisa. O desejo pela mãe não poderia ser satisfeito pois ele é o fim, o término, a abolição do mundo inteiro da demanda, que é o que estrutura mais profundamente o inconsciente do homem. É na própria medida em que a função do princípio do prazer é fazer com que o homem busque sempre aquilo que ele deve reencontrar, mas que não poderá atingir, que nesse ponto reside o essencial, esse móvel, essa relação que se chama lei da interdição do incesto".22(Lacan, 1988, p.87)

O excessivo rigor do supereu, quando exerce sua tirania sobre o eu, é exigência de um gozo que o pai, sustentando a interdição do incesto, impõe ao sujeito que renuncie: que abdique da mãe como objeto desse gozo e invista o desejo em outros objetos, objetos do desejo.

O sentimento de culpa e a necessidade de punição, tal como Freud estabelece no cap. VII do "Mal -estar na civilização", têm sua origem na renúncia pulsional que exigiria cada vez mais renúncias pulsionais. É o supereu agindo sadicamente sobre o eu. A criança renuncia também à satisfação da agressão vingativa contra a autoridade que a impediu de atingir suas primeiras satisfações pulsionais. Se por um lado pensamos aí imediatamente na figura do pai interditor, por outro também nos lembramos que as repetições da vivência de satisfação foram marcadas pela inacessibilidade da Coisa , e que as da vivência de dor pelo recalque primário. Temos aqui, no próprio objeto a sua face insuportável, que impõe que se mantenha uma distância em relação a ele. Se é o pai quem executa a privação, é também ele que abre a via por onde se pode encontrar a medida dessa distância.

No capítulo dedicado à Psicopatologia -Segunda parte do Projeto- Freud associa o sintoma à ‘proton pseudos’ histérica (primeira mentira histérica). Ao colocar o recalque como o núcleo do enigma do sintoma histérico, ele especifica o seu conteúdo sexual: a irrupção do sexual é traumática. A ‘proton pseudos’ permite a formulação de um trauma nachträglich ( a posteriori).

As suposições do Projeto sobre a existência de uma precocidade sexual na histeria e sobre um trauma que só se daria na puberdade, mas que teria sua marca em um fato da infância, permitem a Freud se aproximar do impossível que está em causa: o real do sexual sempre traumático. Sobre as ‘próton pseudos’, Lacan dirá:

"É por meio disso que temos a indicação do que, no sujeito, marca para sempre sua relação com das Ding como mau – que ele não pode, no entanto, formular que seja mau de outra maneira que não seja pelo sintoma."23 ( Lacan, 1988, p.95)

No gozo repetitivo do sintoma, como o retorno do recalcado, o impossível do desejo se realiza, ainda que parcialmente, ao mesmo tempo que o sujeito sofre por essa realização. O sofrimento que acompanha o sintoma declara o quanto de gozo não se pode abrir mão. O quanto se está tão próximo do gozo ameaçador, pois ele passa sem renúncia ao objeto interditado. E o sofrimento exige mais sofrimento. A culpa exige mais dor. O desejo nesta luta, no entanto, fica submetido ao sintoma e paga-se com o sofrimento pela sua realização.

Finalizando , então, podemos afirmar que é com a renúncia pulsional ao objeto interditado e desde sempre perdido, com a submissão do sujeito à Lei-desejo , à castração, que se acederia a um lugar de desejante. O sujeito da falta, sujeito do desejo, comemora a perda da Coisa a cada reencontro, a cada movimento que atualiza a castração nas realizações e decepções do cotidiano. Não ceder em seu desejo a despeito do que se possa colocar da lei moral, seria a via desse sujeito.

"Pois bem, o passo dado por Freud, no nível do princípio do prazer, é o de mostrar-nos que não há Bem Supremo – que o Bem Supremo, que é das Ding, que é a mãe, o objeto do incesto, é um bem proibido e que não há outro bem. Tal é o fundamento, derrubado, invertido, em Freud, da lei moral." 24 (Lacan, 1988, p.90)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1 FREUD, S. Projeto de uma Psicologia. Trad. Osmyr Gabbi Junior. Rio de Janeiro: Imago Ed. . 1995(1895)

2 LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988, p.100

3 FREUD, S. Projeto de uma Psicologia Trad. Osmyr Gabbi Junior. Rio de Janeiro: Imago Ed. 1995(1895), p. 32.

4 LACAN, J., O Seminário livro 2 - O eu na teoria de Freud e na técnica d a psicanálise. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.

5 FREUD, S. Projeto de uma Psicologia Trad. Osmyr Gabbi Junior. Rio de Janeiro: Imago Ed. 1995(1895), p. 32.

6 Idem, p. 79. Parênteses no original.

7 LACAN, J., O Seminário livro 2 - O eu na teoria de Freud e na técnica d a psicanálise. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985, p.134.

8 LACAN, J. , Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998., p.100

9 Idem, p. 100. Grifos do autor.

10 Idem, p. 100

11 LACAN, J., O Seminário livro 7 – A ética da psicanálise. .Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988, p.53

12 FREUD, S. Projeto de uma Psicologia. Trad. Osmyr Faria Gabbi Junior. Rio de Janeiro: Imago, 1995, p.35. Grifos no original.

13 Idem ,p.42

14 LACAN, J. O Seminário, livro 8A Transferência. Riode Janeiro: Jorge Zahar editor, 1992, p.303.

15 BALEIRO, Z. Mambo da dor. Por Rita Ribeiro.no CD Pérolas aos Povos.MZA Music, 1999.

16 FREUD, S. Projeto de uma Psicologia. Trad. Osmyr Faria Gabbi Junior. Rio de Janeiro: Imago, 1995. P.32. Sublinhado por mim.

17 Idem , pg.45

18 FREUD, S. Inibições, Sintomas e Ansiedade (1926[1925]), in Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976, V. XX, ps. 115 e 116.

19 Idem, p.98 Grifo meu.

20 Idem, p.31.

21 FREUS, S. Conferência XXXI, in Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro:Imago, 1976, .XXII,p.84

22 LACAN, J. O Seminário, livro 7- A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1988, p87.

23 Idem p.95

24 Idem p.90.

 

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTARIA

GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo, Introdução à Metapsicologia Freudiana, v.II, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991.

LETRA FREUDIANA Escola, Psicanálise e Transmissão, 100 Anos de Projeto Freudiano, Rio de Janeiro: Revinter, 1995.

PONTALIS, J.B., Intervenção sobre o Entwurf de Freud no Seminário "A Ética da Psicanálise" ,in Letra Freudiana Escola, Psicanálise e Transmissão, A Ética da Psicanálise, Rio de Janeiro, Ano IX, nº 7/8

 

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