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Número 10 - Noviembre 2008
Complexo de Edipo, narcisismo e angustia:
o simbólico, o imaginario e o real no
tratamento psicanalítico de pequenho Hans
Michele Roman Faria

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Publicado apenas quatro anos depois dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade(1905), o caso Hans tem, para Freud, o interesse de ser a comprovação clínica de suas hipóteses sobre a sexualidade infantil, base de toda a teorização sobre o complexo de Édipo desenvolvida nos anos seguintes.

Lacan, cinqüenta anos depois - em seu quarto seminário, de 1956-57 - encontrará em Hans a oportunidade de abordar o que considerava, no fio de seu "retorno a Freud", o ponto central da análise: a função simbólica do pai e o papel do complexo de castração, do falo e do desejo materno na estruturação do desejo humano. Hans interessará a Lacan como caso paradigmático do valor simbólico do complexo de Édipo e de seu papel na formação dos sintomas neuróticos.

Neste trabalho, pretendemos acrescentar a esse aspecto simbólico, amplamente enfatizado por Lacan no Seminário 4, uma reflexão sobre os registros do real e do imaginário, que julgamos estarem presentes nas referências de Freud e Lacan aos temas da angústia e do narcisismo.

 

Hans e a sexualidade infantil

O ponto de partida da narrativa de Freud são as manifestações da sexualidade de Hans, descritas como "típicas do desenvolvimento sexual das crianças em geral"(Freud, vol.X, p.17). Freud destaca o interesse do menino por seu órgão sexual - seu wiwimacher, como Hans o chama - e pelos órgãos sexuais dos seres vivos em geral. A curiosidade de Hans e suas indagações, dirigidas aos pais, evidenciam seu desconhecimento a respeito da diferença sexual, que o próprio termo wiwimacher (cuja tradução literal seria "fazedor de xixi") revela. Freud atribui a esse desconhecimento um caráter universal, tomando-o como ponto de partida para o desenvolvimento do complexo de Édipo e denominando-o premissa fálica, teoria sexual infantil que "consiste em atribuir a todos, inclusive às mulheres, a posse de um pênis"(Freud, vol.IX, p.219).

Freud observa também que a atribuição fálica está diretamente relacionada à valorização: quanto maior a importância e o valor que Hans atribui ao suposto portador do falo, maior ele imagina que seria seu pênis. A mãe entrará nas indagações de Hans como aquela que teria um wiwimacher "tão grande como o de um cavalo", o que mostra não apenas a valorização da mãe, portadora de um grande falo, mas também o lugar que se anuncia para o cavalo muito antes do surgimento da fobia. Hans, paralelamente, também procurará certificar-se de seu próprio valor fálico, adotando uma atitude claramente exibicionista em relação ao próprio pênis, mostrando-o à mãe e contando-lhe do interesse da tia, que elogiara o "amor de coisinha" que ele tem. A presença do pênis aparece, nesse momento, como garantia narcísica de Hans.

Lacan enfatizará essa mesma condição narcísica inicial de Hans, ressaltando um outro dado: a posição de Hans na estrutura familiar. Segundo Lacan, Hans é objeto de uma devoção intensa da mãe, cujos sentimentos que tem por ele são "tão ternos que tudo lhe é permitido."(Lacan, S4, p.227) Para Lacan, "o pequeno Hans, filho único, nada em felicidade."(Lacan, S4, p.227). Lacan refere-se a essa posição de Hans em relação à mãe como um engodo: a criança crê ser o objeto que satisfaz a mãe, realizando sobre si a imagem fálica.

Lacan observa que essa posição, ainda que ilusória, é também estruturante, pois é nela que a criança encontra um ponto de sustentação de seu narcisismo: "essa imagem fálica, a criança a realiza sobre si mesma, e é aí que intervém, falando propriamente, a relação narcísica."(Lacan, S4, p.72)

O que intriga Lacan no Seminário 4 é: como Hans poderia sair desse engodo que o mantém na posição narcísica de ser a imagem fálica que satisfaz a mãe? De certa forma, é essa mesma indagação que parece marcar a abordagem de Freud, mas pelo viés de sua preocupação com a dificuldade de Hans em sair do engodo da premissa fálica. Tanto Freud, como Lacan, preocupam-se portanto com a saída da posição narcísica inicial da criança, pelo efeito do complexo de castração.

 

Complexo de Édipo e direção do tratamento

A hipótese de Freud é que a saída do engodo fálico dependeria da descoberta da diferença sexual, que conduziria naturalmente ao complexo de castração. Sua hipótese terá conseqüências diretas sobre o manejo clínico do caso: Freud propõe ao pai de Hans que forneça ao menino um esclarecimento sobre a diferença sexual.

(...) Sugeri a seu pai que começasse a dar a Hans alguns esclarecimentos dentro do tema do conhecimento sexual. O comportamento anterior da criança constituía para nós justificativa para admitirmos estar sua libido relacionada com um desejo de ver o pipi de sua mãe. Propus então a seu pai que afastasse de Hans esse objetivo, informando-o de que sua mãe e todos os outros seres femininos (como poderia constatar com Hanna) não tinham pipi nenhum.(Freud, vol.X, p.39)

A hipótese de Freud parece ser que o pai, ao fazê-lo, atuaria como agente da instauração do complexo de castração em Hans. Freud percebe a necessidade de oferecer a Hans um elemento que lhe dê condições de dialetizar, em termos de presença e ausência, em termos do complexo de castração, o que se apresenta inicialmente como uma teoria sexual infantil sustentada pela idéia da presença de pênis em todos os seres vivos. Freud crê que a informação do pai sobre a falta do pênis nas mulheres poderia ser esse elemento. Mas porquê tal intervenção não teria produzido os efeitos desejados?

Lacan, retomando o caso, nos faz observar a posição do pai, que parece ter dificuldades em ocupar justamente o lugar sugerido por Freud: atuar como agente da castração. A hipótese de Lacan sobre o elemento decisivo para a saída de Hans do engodo fálico da relação com a mãe será, portanto, a de que essa saída não dependeria da informação sobre a distinção entre os sexos, mas da função simbólica do pai. Lacan entende que, se Hans não sai do engodo fálico, é porque tem um pai "inoperante".

De certa forma, Lacan seguirá os passos de Freud: ambos consideram que a criança estaria inicialmente no nirvana narcísico da relação com a mãe, do qual ela só poderia sair pelo complexo de castração. A questão de ambos é clínica, uma clínica orientada pela teoria do complexo de Édipo: o que poderia funcionar como ponto de sustentação do complexo de castração para Hans? A percepção da diferença sexual anatômica? A entrada de um pai que interditaria a relação da criança com a mãe? Na resposta a essa pergunta, evidencia-se a hipótese clínica que orienta o manejo do caso.

Tanto Freud como Lacan esperam que o complexo de castração ponha fim ao engodo da relação narcísica com a mãe e forneça uma "solução" ao complexo de Édipo. O surgimento do sintoma se esclareceria, assim, pela hipótese de um Édipo "mal resolvido": o pai não funciona como deveria - é a hipótese de Lacan; a diferença anatômica foi mal esclarecida - hipótese freudiana. No fundo dessas hipóteses, é evidente a aposta em um complexo de Édipo ideal, que se resolveria com um pai que funcionasse bem, ou com uma boa teoria da sexualidade.

Conforme já tivemos oportunidade de mostrar (Faria, 2006), os avanços teóricos de Lacan posteriores ao Seminário 4, especialmente aqueles relativos ao objeto a e ao real, nos permitem re-situar o lugar do complexo de Édipo na teoria, bem como seu valor clínico. Na medida em que o real passa a ser compreendido como um impossível sempre precariamente circunscrito pela função simbólica do pai, a hipótese de uma eficácia da função paterna (ligada a um Édipo ideal, normal, sem produção sintomática) será relativizada, e a própria função paterna passará a ser considerada uma suplência, um ordenador simbólico de certa forma sempre ineficaz no sentido de dar conta desse impossível.

Quando retomamos o Seminário 4 nessa perspectiva, é possível observar que os temas do imaginário e do real não passaram despercebidos por Lacan e permitem pensar - com o auxílio do texto freudiano Bate-se em uma criança(1919) - alguns desdobramentos da teoria do Édipo em sua relação com a angústia e o narcisismo, o que nos conduzirá a uma leitura do caso Hans condizente com esse reposicionamento de Lacan em relação ao lugar do complexo de Édipo, a partir da invenção do objeto a.

 

Hans e a angústia

Lembremos que Freud, ao tentar desvendar o sentido do sintoma de Hans, inicia sua investigação pela angústia. Hans desperta em lágrimas certa manhã, e quando lhe perguntam porque chora, conta o seguinte sonho, que Freud caracteriza como "sonho de angústia": "quando eu estava dormindo, pensei que você tinha ido embora e eu ficava sem a Mamãe para mimarmos juntos"(Freud, vol.X, p.34) Alguns dias depois, a angústia aparece no passeio com a babá. Hans chora e pede que o levem para casa, dizendo que "queria mimar junto com a mãe."(Freud, vol.X, p.34) No dia seguinte, a mãe, procurando descobrir o que o atormentava, lhe propõe um passeio, mas Hans, antes mesmo de sair de casa novamente, volta a chorar angustiado. Depois resolve ir, mas novamente irrompe a angústia - dessa vez em presença da mãe.

Nessa ocasião, entretanto, Hans encontra uma forma de nomear seu medo: "eu estava com medo de que um cavalo me mordesse."(Freud, vol.X, p.35) À noite, na hora de dormir, nova crise de angústia, que é novamente nomeada: "eu sei que vou ter de passear amanhã de novo."(Freud, vol.X, p.35) E depois: "o cavalo vai entrar no quarto."(Freud, vol.X, p.35) Freud localiza este como "o começo da angústia de Hans bem como o início da sua fobia."(Freud, vol.X, p.35) Para ele, trata-se de um momento da maior importância, pois "nenhum momento é tão favorável para a compreensão de um caso quanto seu estádio inicial" (Freud, vol.X, p.35). Freud considera que "o distúrbio teve início com pensamentos ao mesmo tempo apreensivos e ternos, seguindo-se então um sonho de ansiedade cujo conteúdo era a perda de sua mãe e, com isso, não poder mais 'mimar' junto com ela."(Freud, vol.X, p.35)

No Seminário 4, Lacan afirmará, sobre a angústia, que ela surge "a cada vez que o sujeito é, por menos sensivelmente que seja, descolado de sua existência."(Lacan, S4, p.231) Segundo ele, "a angústia é correlativa do momento em que o sujeito está suspenso entre um tempo em que não sabe mais onde está, em direção a um tempo onde ele será alguma coisa na qual jamais se poderá reencontrar. É isso aí, a angústia."(Lacan, S4, p.231) Esse "descolamento' de Hans em relação à posição que ocupava junto à mãe, esse "tempo de suspensão" em que não sabe mais onde está, Lacan chama-o "desamparo de não mais bastar."(Lacan, S4, p.233)

Hans, até então narcisicamente situado no engodo fálico da relação imaginária com a mãe, é confrontado com um real que produz um abalo em sua posição. Mas o que seria esse real? Lacan localiza-o como a própria manifestação da pulsão real, a atividade masturbatória de Hans. Mas não a masturbação isoladamente, pois quando começa a se masturbar, Hans o faz sem o menor pudor: a clássica ameaça proferida pela mãe: "se você se masturbar, vamos chamar o doutor A para te cortar isso"(Lacan, S4, p.227) não produz, inicialmente, qualquer efeito sobre Hans. Lacan lembra, inclusive, que "como diz muito bem Freud, a masturbação em si mesma não acarreta, naquele momento, nenhuma angústia, a criança continua a se masturbar."(Lacan, S4, p.228)

Não se trata, portanto, simplesmente da masturbação, mas de um descolamento da criança de sua posição narcísica inicial (a do engodo fálico na relação com a mãe), que só se produz quando a masturbação passa a ter, para Hans, o sentido desse descolamento, ou seja, quando sua interpretação passa a ser que a masturbação o tira da posição de objeto que satisfaz a mãe. O que produziria a angústia seria essa queda, essa hiância, o desamparo de não mais bastar de que fala Lacan.

E, como indica o relato de Freud, tendo surgido a angústia, surge também o sintoma. Inicialmente, afirma Lacan, "não se trata da castração, trata-se da fobia, e do fato de que não podemos de modo algum ligá-la de maneira simples e direta à interdição da masturbação."(Lacan, S4, p.228) O que Lacan observa, é que há uma inversão, pois a aparição do sintoma é anterior à interdição da masturbação e posterior ao surgimento da angústia.

Do ponto de vista da teoria do Édipo, o que se espera é que a criança saia da posição narcísica inicial pelo complexo de castração que, por sua vez, produziria angústia e que, finalmente, levaria à saída do Édipo. Lacan, entretanto, observa que, no caso Hans, a angústia não aparece como um efeito do complexo de castração, não é a castração que produz angústia, mas o contrário. Se a angústia é anterior, Lacan vai então sugerir que a castração, paradoxalmente, pode ser pensada como uma necessidade do sujeito.

Enquanto a teoria freudiana do complexo de Édipo sugere que a castração é o que interdita o sujeito de uma satisfação narcísica que teria sido possível sem ela, Lacan mostrará que a castração não é o impedimento em si (aparentemente agindo contra o sujeito), ela é um recurso do sujeito. Segundo ele, há vários elementos que, embora não tenham nenhum efeito sobre a criança num primeiro momento, lhe servirão, à posteriori, "de material para construir aquilo de que precisa, isto é, o complexo de castração. Mas a questão é, justamente, a de saber porque ela precisa disso."(S4, p.288)

 

A sutura do real pelo simbólico

Ao elaborar sua teoria do complexo de Édipo, Freud freqüentemente se vê às voltas com a pergunta sobre qual seria o elemento responsável pela instauração do complexo de castração na criança: a ameaça de cortarem-lhe o pênis, devido à masturbação? A visão dos genitais do sexo oposto? A visão dos genitais da mãe, que em Fetichismo(1927) aparece como a última a ser percebida como castrada? Todos esses elementos situam-se, teoricamente, como sendo capazes de produzir a angústia de castração. No caso da menina, pode-se acrescentar ainda o temor da perda do amor dos pais.

Lacan, entretanto, ao inverter a lógica da relação entre angústia e castração, situando a angústia como anterior, nos conduzirá à concepção do complexo de castração como uma função de ordenação, de nomeação desse ponto de angústia. É essa a necessidade que define a relação do sujeito com o complexo de castração.

Trata-se de duas formas diferentes de compreender o complexo de Édipo, mas isso não quer dizer, entretanto, que elas sejam incompatíveis entre si.

Do ponto de vista do sujeito neurótico, temos o Édipo como a estrutura que faz crer que a satisfação plena, narcísica, teria existido (é aquela que o sujeito teria ocupado enquanto objeto do gozo materno) mas que a presença do pai (ou de um substituto, como o cavalo de Hans), o teria impedido de realizá-la. Assim é que o neurótico constrói seu romance familiar, no qual pai, mãe e criança têm seus lugares definidos simbolicamente a partir do falo e da castração. É o "mito individual do neurótico", ou o que Lacan chamou a função de mito do complexo de Édipo:

A função do mito se inscreve aí. Tal como descobre para nós a análise estrutural, que é a análise correta, um mito é sempre uma tentativa de articulação de um problema. Trata-se de passar de um certo modo de explicação da relação-com-o-mundo do sujeito ou da sociedade em questão para outro modo - sendo essa informação requerida pela aparição de elementos diferentes, novos, que vêem contradizer a primeira formulação. Eles exigem de certo modo, uma passagem que é, como tal, impossível, que é um impasse. Isso é o que dá estrutura ao mito. (Lacan, S4, p.300)

Nesse sentido, o Édipo pode ser pensado, como afirma Lacan no Seminário 17, como o sonho de Freud que, "como todo sonho, precisa ser interpretado."(Lacan, S17, p.128)

Quando Lacan propõe uma inversão na relação entre angústia e complexo de castração - que nos leva a uma compreensão do Édipo como um recurso do sujeito neurótico - ele nos ajuda a ver que o mito edipiano, tal como Freud o descreve, é uma resposta possível à angústia que advém, não da castração (versão neurótica), mas do próprio real 1. Real do desamparo que, ligado à idéia que Lacan nomeia como "não mais bastar" ou "descolamento de sua existência", produz o insuportável de uma angústia para a qual o sujeito encontra, na estrutura do Édipo, um anteparo.

O sujeito opera, com os elementos edípicos, um corte no real, transformando vazio, em falta simbólica: a castração. A castração toma lugar - assim como o Édipo - como um ordenador simbólico do real para o sujeito. Como nos lembra Lacan, "não existe falta no real, a falta só é apreensível por intermédio do simbólico"(S10, p.147) É esse recurso simbólico que oferece a Hans (assim como a todo sujeito neurótico) a possibilidade de produção de uma suplência, que servirá de anteparo ao real: "vemos já se esboçar o modo de suplência que permitirá superar a situação primitiva, dominada pela pura ameaça de devoração total pela mãe."(Lacan, S4, p.377) Para Lacan, "se o complexo de Édipo tem um sentido, é precisamente porque ele dá [a função do pai] como fundamento de nossa instalação entre o real e o simbólico(...)"(Lacan, S4, p.383. Grifos nossos)

O efeito dessa operação é o sujeito, $, aquele que encontra a saída do complexo de Édipo pela castração simbólica. No Seminário 10, Lacan abordará esse mesmo efeito-sujeito, $, mas ao invés de situá-lo através dos elementos do complexo de Édipo - pai, mãe, criança, falo, castração - ele nos levará a pensar em uma operação que implica a posição do sujeito em relação ao Outro, A: "o sujeito barrado, o único a que nossa experiência tem acesso, constitui-se no lugar do Outro como marca do significante. Inversamente, toda a existência do Outro fica suspensa numa garantia que falta, donde o Outro barrado."(Lacan, S10, p.129) Lacan situa dois lugares, o do sujeito e o do Outro, que se desdobram em quatro: S (o sujeito na origem), $ (o sujeito barrado), A (o campo da linguagem), A (a garantia que falta). Trata-se da mesma ordenação simbólica, pela via significante, presente na teoria do Édipo, mas no Seminário 10 ele nos conduzirá à concepção de que essa ordenação não recobre completamente o real, que "dessa operação, no entanto, há um resto, que é o a."(Lacan, S10, p.129)

Lacan nos mostrará que é essa a posição que o neurótico ocupará na fantasia. A crença do sujeito, sustentada pela fantasia, será a de que, não fosse a castração, ele estaria na posição de objeto do gozo do Outro. A fantasia sustenta, portanto, um paradoxo: ela é ao mesmo tempo o vislumbre de um gozo pleno, que o sujeito crê ser a da realização narcísica - concebida por Freud em Uma criança é espancada (1919) como forma de resgate da "onipotência imaginária" da criança (Freud, vol.XVII, p.234) - mas é também desaparecimento do próprio sujeito naquilo que o define em essência, a de ser $, sujeito barrado. No horizonte, o fantasma acena com a crença de que essa falta pode vir a faltar, mas o que o fantasma evoca, paradoxalmente, não é satisfação, mas angústia - que revela o risco de desaparecimento do próprio sujeito pela perda desse ponto de sustentação essencial, a castração. "Esse objeto a que o neurótico se leva a ser em sua fantasia cai-lhe quase tão mal quanto polainas num coelho", ironiza Lacan. "É por isso que o neurótico nunca faz grande coisa com sua fantasia."(Lacan, S10, p.60)

Em Bate-se em uma criança, Freud mencionará as marcas deixadas pela operação simbólica do complexo de Édipo, situando aí justamente a fantasia:

Na nossa opinião, o complexo de Édipo é o verdadeiro núcleo das neuroses e a sexualidade infantil que culmina nesse complexo é que determina realmente as neuroses. O que resta do complexo no inconsciente representa a inclinação para o posterior desenvolvimento das neuroses no adulto. Dessa forma, a fantasia de espancamento e outras fixações perversas análogas também seriam apenas resíduos do complexo de Édipo, cicatrizes, por assim dizer, deixadas pelo processo que terminou, tal como o notório "sentimento de inferioridade" corresponde a uma cicatriz narcísica do mesmo tipo.(Freud, vol.XVII, p.241)

A fantasia é a cicatriz do complexo de Édipo, justamente porque a sutura que o simbólico promove, ainda que faça anteparo ao real, deixa as marcas do corte que se tentou fechar. O real é a ferida que, aberta, engoliria o sujeito na realização fantasmática do gozo, até onde a pulsão de morte o levaria. O Édipo é recurso do sujeito para fazer sutura ao que se anuncia como a ferida exposta do real.

É o que se observa no caso Hans, quando incluímos os três registros em nossa reflexão. Hans se utiliza do significante em toda a sua potência metafórica e metonímica para produzir de uma série de mitos e construções que revelam suas sucessivas tentativas de articular...

(...)a solução do problema, o de sua própria posição na existência, na medida em que ela deve se situar com relação a uma certa verdade, a um certo numero de referências de verdade, nas quais ele deve tomar seu lugar.(Lacan, S4, p.366)

Lacan nos lembra que "o sujeito escolhe uma delas para preencher uma função bem precisa, a de assegurar a estabilização momentânea de certos estados, no caso presente, do estado de angústia."(Lacan, S4, p.412)

Produz-se, assim, um enodamento entre o imaginário - representado freudianamente pelo narcisismo da criança que satisfaz a mãe, a criança em posição de objeto do gozo materno - o simbólico - representado pelo complexo de Édipo, que localiza o vazio da carne aberta como ferida a suturar, na castração que se anuncia pela ameaça representada pelo cavalo - e o real, cuja evidência é a cicatriz da fantasia, ao mesmo tempo anunciando o gozo e revelando sua potência de aniquilamento da existência do sujeito, naquilo que lhe confere sua condição de ser de linguagem, $.

De um lado, o que se tem é a neurose, faz crer que Édipo e sintoma seriam impedimento à realização narcísica (Édipo como sonho de Freud). Temos aí a ferida narcísica de toda neurose, e a crença de que a análise poderia curá-la, produzindo um sujeito sem cortes. De outro, a compreensão de que essa estrutura neurótica não é senão uma forma de dar solução ao desamparo frente ao real - temos aí a fantasia como cicatriz do Édipo e a direção da análise no sentido da construção e atravessamento desse ponto que existirá sempre - não como ferida aberta, mas com as marcas que não se pode apagar e que deixam, inexoravelmente, sua cicatriz.

Em tempo: o que encontramos na saída da análise de Hans? Lacan faz, sobre ela, o seguinte comentário:

Não é sem razão que Freud sublinha, com uma satisfação que está longe de nos proporcionar alívio completo, que a questão do Édipo foi resolvida de maneira muito elegante por esse homenzinho que se faz, a partir de agora, o esposo de sua mãe e remete o pai à avó. Digamos que seja uma forma elegante, e até humorística, de eludir a questão.(Lacan, S4, p.394)

Na medida em que a saída de Hans é a do complexo de Édipo (e não a da construção e atravessamento do fantasma), ela evidencia a que ponto o sujeito pode chegar para saturar a angústia e a resolvê-la em sua versão de novela familiar: cada qual com sua própria mãe, final feliz.

Notas

1 Não nos esqueçamos que há também a resposta da psicose, o que exige pensar que há outras formas possíveis de organização dessa resposta pelo sujeito.

Referências bibliográficas

FREUD, Sigmund. Obras completas. Imago, RJ, 1980.

Três ensaios sobre a teoria da sexualidade(1905)

Análise de uma fobia em um menino de cinco anos(1909)

Uma criança é espancada(1919)

Romances familiares(1909)

Fetichismo(1927)

A dissolução do complexo de Édipo(1924)

LACAN, Jacques.

Seminário 4: a relação de objeto(1956-57). Jorge Zahar, RJ, 1995.

Seminário 5: as formações do inconsciente(1957-58). Jorge Zahar, RJ, 1999.

Seminário 10: a angústia(1962-63). Jorge Zahar, RJ, 2005.

Seminário 17: o avesso da psicanálise(1969-70). Jorge Zahar, RJ, 1992.

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