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Número 11 - Agosto 2014
Laços possíveis no autismo
Paloma Estáquio da Silva Moura y Roberta Costa

 

 

"Eu nunca tinha reparado como é curioso um laço...
Uma fita dando voltas. Enrosca-se, mas não se embola, vira, revira, circula e pronto: está dado o laço.
É assim que é o abraço: coração com coração, tudo isso cercado de braço.
É assim que é o laço: um abraço no presente, no cabelo, no vestido, em qualquer coisa onde o faço.
E quando puxo uma ponta, o que é que acontece?
Vai escorregando... devagarzinho... desmancha, desfaz o abraço (...)
Não prende, não escraviza, não aperta, não sufoca.
Porque quando vira nó, já deixou de ser um laço”
(1).

Crianças autistas brincam? É possível apostar que possam estabelecer, ainda que de forma bastante particular, algum tipo de laço? Que trabalho é possível com essas crianças não raramente são descritas por negativas - “não brincam”, “não fazem laço”, “não interagem”? Se elas têm uma relação tão particular com o Outro, que lugar pode-se pleitear a elas em um trabalho institucional?

Pensaremos essas questões a partir de uma atividade realizada no NAICAP (2), o Espaço de Convivência, apresentando uma possibilidade de trabalho institucional com crianças autistas. O Espaço de Convivência privilegia ações no sentido de promover a construção de laços possíveis para as crianças em atendimento intensivo. Além disso, constitui-se um espaço de acolhimento das novas crianças depois da porta de entrada, inserindo-as no cotidiano do serviço. Neste sentido, torna-se relevante e bastante indicada que a entrada de cada criança se dê de forma gradual, e sua participação, através de atividades com o mínimo de demanda de uma produção específica e um tempo de permanência curta.

Uma experiência em particular...
           
À guisa de introdução, apresentaremos o Espaço de Convivência com crianças autistas bem pequenas (faixa etária de 4-5 anos) (3) . Inicialmente, fez-se necessário marcar um lugar para a atividade, pois além das crianças tenderem a ficar bastante dispersas pelo serviço (no sentido de ocuparem espaços físicos diferentes), acontecia, neste mesmo horário, um outro Espaço de Convivência, contando com um grupo de crianças maiores (com idades entre 7 e 11 anos). Escolhida a sala, foi-lhe dada uma configuração para a atividade: almofadas, brinquedos e materiais diversos, som, espelhos.

Quanto ao horário, também era preciso demarcá-lo e, uma vez acordado, ele seria repetido semanalmente. Neste sentido, foi preciso inclusive conversar com os pais e/ou responsáveis, que muitas vezes traziam as crianças mais cedo ou mais tarde que o horário marcado, o que prejudicava sua permanência na atividade. A decisão tomada foi a de que, ainda que chegassem mais cedo ao serviço, as crianças só entrariam no horário combinado, pois percebemos com freqüência que, quando a recebíamos mais cedo que o horário marcado, não suportavam esperar as outras crianças ou mesmo ficar todo o tempo da atividade quando ela, de fato, começava. Um aspecto interessante é que, com isso, muitas vezes elas começaram a esboçar algum tipo de interação já na sala de espera – em uma das vezes, ao abrirmos a porta do serviço, uma das crianças buscou cada uma das outras pela mão, levando-as à sala para a atividade. Vale ressaltar que a entrada coletiva das crianças na atividade também promovia uma freqüência maior do grupo na mesma.

O que inicialmente as convocava à sala era a música, que marcava o início do Espaço de Convivência daquele grupo (4) . Elas entravam na sala e ali, sem pré-determinar nenhuma atividade específica, deixávamos que escolhessem as brincadeiras. Percebemos inicialmente que embora estivessem em um mesmo ambiente, não havia quase nenhum contato entre elas, nenhuma manifestação de interesse pelo que outra criança estava fazendo, um visível alheamento. Algum contato era estabelecido, ainda que muito rapidamente, quando uma criança “tomava” algum brinquedo das mãos de outra, mas ainda assim, parecia que quando o perdiam, as crianças se mostravam indiferentes e pouco incomodadas. Certa vez, uma criança apagou a luz, deixando outra tão incomodada com o escuro a ponto de literalmente “escalar” o colo das técnicas em busca de alguma proteção. Nesse caso, não havia acordo possível: apenas quando elas mesmas desistiam de suas idéias iniciais, alguma coisa mudava na dinâmica da atividade. E por mais que deixássemos uma variedade de materiais disponíveis e até sugeríssemos algumas brincadeiras, cada criança parecia se divertir sozinha: uma cantava, outra batia objetos repetidamente no seu corpo, outra pulava, outra “desfilava” em uma brincadeira pouco exibicionista e bastante indiferente às outras crianças.

Entretanto, uma mudança bastante valiosa foi promovida com a entrada de uma quinta criança, já no decorrer de alguns meses em que esta atividade vinha sendo realizada. O grupo, até então formado por três meninos e uma menina, contava com mais uma menina. E uma menina com uma postura bastante diferente das demais crianças: ela solicitava a companhia das outras, convocando-as para suas brincadeiras, seja puxando seus braços ou mesmo inventando brincadeiras que elas acabavam repetindo, como por exemplo, subir escadas e descer jogando-se no colo das técnicas. Se, por um lado, os meninos respondiam às suas solicitações, ainda que de maneira bastante particular, a menina mais antiga no grupo foi se isolando, chagando a ficar quase que “colada” à porta de saída, evitando qualquer participação na atividade e muitas vezes não aceitando sequer retirar sua mochila das costas, mantendo-a tal como chegara ao serviço enquanto permanecia sentada durante toda a atividade. Antes, quando era a única menina entre os meninos, parecia sentir-se mais à vontade.

Entretanto, essa nova menina assinalava uma nova configuração do grupo, produzindo-lhe um novo movimento a partir de suas demandas específicas nas brincadeiras e de sua tentativa muito particular de se comunicar. Em uma das vezes em que esse novo membro do grupo pegou um brinquedo das suas mãos, aquela menina que participava há mais tempo dessa atividade, sempre de forma tão alheia, mostrou um choro sentido, diferente da postura até então indiferente que tinha quando um dos meninos fazia a mesma coisa e ela parecia abrir mão tão facilmente dos objetos que usava.

Tornou-se claro, neste momento, que a entrada dessa nova criança possibilitou uma mudança nas posições subjetivas, tanto das crianças como dos técnicos, pois além de solicitar a participação mais ativa das crianças, também a nós (técnicas) foi dada uma maior convocação neste sentido – o que modificou também a relação das outras crianças conosco, já que começaram a nos solicitar e incluir nas brincadeiras mais ativamente também.

Essas mudanças na dinâmica do grupo a partir da entrada dessa nova criança suscitaram várias questões não somente com relação à atividade, mas, sobretudo, sobre a postura das crianças nela envolvidas (sua relação entre si e com as técnicas). Estariam, de fato, brincando? Seria aquele o laço possível, efeito desse trabalho? Como pequenas mudanças suscitaram modificações tão fortes na dinâmica do grupo? Como pensar o contraste entre o alheamento dos autistas e suas manifestações diante de certas contingências do serviço (tais como a ausência de uma pessoa do staff, a falta de uma das crianças do grupo ou mesmo a presença de alguma outra criança no setor por qualquer outro motivo)? O certo era que, independente do acontecimento, tudo se refletia diretamente no funcionamento do grupo durante a atividade.

Algumas questões...

Inicialmente, faz-se necessário pensar a posição de cada um (crianças e técnicas) na proposta de um trabalho institucional com essas crianças. Tal como nos questiona Miranda (1999): “Seria possível, a partir da demanda radical de que o Outro não demande, estabelecer uma demanda mínima na transferência com autistas? E como?” (5). Qualquer trabalho só será possível se houver uma aposta neste sentido, fortemente embasada no que Freud (1938) já alertava:

O problema das psicoses seria simples e claro se o desligamento do ego em relação à realidade pudesse ser levado a cabo completamente. Mas isso parece só acontecer raramente ou, talvez, nunca” (6).
 
Tal fragmento assinala a possibilidade de estabelecer uma transferência com essas crianças que não são tão indiferentes ao Outro quanto parecem – o que, de certa forma, é atestado no contraste entre os momentos em que elas se mostram alheias à nossa presença e outros em que parecem se sentir invadidas por nossa voz ou olhar.

Baio (1999) já aponta um caminho possível quando funda a prática institucional com crianças autistas e psicóticas em um campo onde os analistas se fazem parceiros, por assim dizer, dessas crianças, para que elas possam realizar o ato de “se produzir como sujeito” (7). Produzir-se como sujeito aqui significa sair da posição de objeto de um Outro louco, invasor. Para tal, algumas condições são necessárias, tanto para o sujeito, como para o Outro, no que se refere ao laço social que será possível.
Tomando como referência alguns exemplos descritos por Baio e Kusnierek no texto L’autiste: um psychotique au travail (1993), o que parece ser necessário para as crianças autistas, a partir do estatuto do Outro (8), é a exigência de uma regulação: o olhar é vigiado (9), a voz é ritmada com certa musicalidade (10) , o alimento é tratado imperativamente em rituais (11), os excrementos submetidos a tratamentos diversos (12). Em última instância, todas essas manobras – que não são arbitrárias justamente porque respondem à lógica de um sujeito já em trabalho para sair de sua posição de objeto do Outro - visam no real uma regulação, um esvaziamento desse Outro intrusivo.

Assim, são esses espaços possibilitadores de trocas, onde este esvaziamento do Outro se dá continuamente - já que as crianças também o realizam através de suas estereotipias, automutilações, e outras atitudes que sinalizam um trabalho para descompletar esse Outro invasor, desregrado, sem lei - que permitem a construção de algum laço e, neste sentido, de uma “parceria” necessária para a construção de um lugar possível para aquele que recolhe os efeitos do trabalho que essa criança já realiza.

A prática feita por muitos – termo cunhado por Jacques Allain-Miller para descrever a prática institucional proposta em Antenne 110 (13) - constitui então uma referência de trabalho, na medida em que se constitui como uma “tentativa de tratamento, na psicose, do impasse ligado à transferência” (14), à relação do sujeito com este Outro. Na sua proposta, os educadores, ao se confrontarem com o real de gozo desenfreado tratado por essas crianças, colocam-se entre vários, a partir de uma posição de destituição de saber. Entretanto, não se trata de uma destituição de todo o saber, mas sim daquilo que Baio (1999) definiu como “condições exigidas pelo sujeito psicótico, a saber, que saiba “saber-não-saber” (15). Assim, ao mesmo tempo em que a criança já elabora um saber – e Baio ressalta o quanto essa elaboração ultrapassa os limites das sessões individuais, o que podemos confirmar na experiência clínica descrita anteriormente pelo próprio movimento de interação das crianças já na sala de espera – para que essa elaboração prossiga, é preciso que este Outro, tomado pela criança autista como invasor, seja um parceiro que “não sabe”.

Se, por um lado, isso implica um ato do próprio técnico em considerar que ele mesmo não possui um saber de antemão, isso pressupõe uma “autorização” da criança do lugar que esse técnico (analista ou não) vai ocupar. O lugar que o técnico ocupa neste trabalho se dá então a partir de um certo “consentimento” da criança: não basta que ele por si só se autorize a ser um “notário” e se coloque como parceiro da criança autista e psicótica nesse tratamento que ela dá ao Outro, mas, sobretudo, é preciso que esse lugar lhe seja instituído pela própria criança.

A direção do trabalho institucional aqui proposta então não é de uma atribuição de sentidos aos ditos e/ou manobras da criança autista e psicótica – o que justamente reproduz a configuração do Outro do saber – mas, através da prática de vários, apresentar um adulto que não coloca em risco o enigma do desejo do Outro. Um adulto que ali, como técnico, só dispõe de um único saber: o que de é preciso saber não-saber.
Se para que haja algum trabalho analítico é preciso que haja demanda, o trabalho institucional com crianças autistas – que não demandam – requer, mais que qualquer outra coisa, um manejo da transferência, maciçamente presente nessas crianças. A mudança de uma posição transferencial é então condição necessária, embora não suficiente, para que uma demanda nasça.

Com relação à experiência que citamos, pensamos que esse manejo da posição transferencial, existente desde o primeiro momento da atividade, possibilitou alguma mudança subjetiva das crianças a partir da entrada de uma quinta criança naquele contexto já configurado. E, na medida em que pautamo-nos na prática de vários, pensamos ter encontrado um caminho para a realização de um trabalho em instituição na clínica do autismo e, mais que isso, um caminho que aponta para a possibilidade de construção de algum laço - bastante particular, mas possível, para essas crianças.

Referências Bibliográficas

ALBERTI, Sônia. Autismo e Esquizofrenia na Clínica da Esquize. Rio de Janeiro: Marca D’água Editora e Livraria, 1999.

BAIO, Virginio. Les conditions de l’Autre et l’ancrage. In: Preliminaire. Número 19-20. Bruxelas, 2000.
____________. Présentation de l’Antenne 110. In: Preliminaire. Número 4. Bruxelas, 1992.
____________ & KUSNIEREK, Monique. L’autiste: um psychotique au travail. In: Preliminaire. Número 5. Bruxelas, 1993.
____________. Paroles marquantes pour l’enfant. In: Preliminaire. Número 8. Bruxelas, 1996.
____________; HALLEUX, Bruno de; KUSNIEREK, Monique. Le travail em institution et son cadre In: Preliminaire. Número 4. Bruxelas, 1992.
____________. C’est le moment de frapper le réel. In: Preliminaire. Número 9-10. Bruxelas, 1998.
____________. O ato a partir de muitos. In: Curinga. Número 13. Belo Horizonte: EBP-MG, 1999.
____________. Comment um S2 vient ao S1. Notaires de l’enfant autiste. In: Archives de Psychanalyse. Paris: Ravages de la parole, 1996.

CIACCA, Antonio di. Savoir et institution. In: CEREDA. Volume 51 . Paris: Navarin Editeur, 1987.

FREUD, Sigmund. Esboço de Psicanálise (1938). Volume XXIII. Edição Standard das Obras Completas de S. Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

MONTEIRO, Katia Alvares de Carvalho. Relatório de Avaliação das Atividades e Recursos do NAICAP. Rio de Janeiro, dezembro/2002.

STEVENS, Alexandre. A clinica psicanalítica em uma instituição para crianças. In: Estilos da Clínica. Número 1. São Paulo: USP, 1996.
__________________. A instituição: prática do ato. In: Escola Brasileira de Psicanálise. Número 4. Ano 10. São Paulo: USP, 2003.

ZENONI, Alfredo. “Traitement” de l’Autre. In: Preliminaire. Número 3. Bruxelas, 1991.

Notas

(1) “O laço e o abraço” (autor desconhecido).

(2) Núcleo de Assistência Intensiva à Criança Autista e Psicótica, do Instituto Municipal Philippe Pinel, instituição pública da rede de atendimento em saúde mental do Rio de Janeiro.

(3) O período que tomaremos como referência na realização desta atividade será o ano de 2003, contando com a presença das técnicas autoras deste artigo no serviço.

(4) Vale ressaltar que essas crianças participavam de outros Espaços de Convivência, com outras crianças e outras técnicas, nos outros dias em que estavam em atendimento no serviço. Entretanto, cada grupo tinha sua própria dinâmica e configuração. Aqui tomaremos como referência apenas esse grupo deste trabalho, realizado todas as segundas-feiras, às 11hs.

(5) MIRANDA, Elisabeth da Rocha. Uma esquizofrenia precocemente desencadeada? In: Autismo e Esquizofrenia na Clínica da Esquize. Sônia Alberti (organizadora). Rio de Janeiro: Marca D’água Editora e Livraria, 1999. p. 118.

(6) FREUD, Sigmund. Esboço de Psicanálise (1938). Volume XXIII. Edição Standard das Obras Completas de S. Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 215.

(7) MILLER, Jacques-Allain. Produire le sujet? La clinique psychanalytique des psychoses. Actes de la cause Freudienne. Montpellier, 1983 citado por BAIO, Virginio. O ato a partir de muitos. In: Curinga. Número 13. Belo Horizonte: EBP-MG, 1999.

(8) No autismo, o Outro parece ser, para o sujeito, consistente e pleno de gozo.

(9) Tradução do exemplo no texto referido: “Xavier faz apelo ao olhar do Outro, mas sob seu controle (...) Ele nunca brinca de esconder, não desaparece, não questiona o lugar que ele ocupa no desejo do Outro. Ele convoca o olhar, e quando ele decidiu, para lhe mostrar o que ele quer lhe mostrar, e ele verifica o olhar, vigia-o” (BAIO, 1993).

(10) Tradução do exemplo no texto referido: “Pode-se, por exemplo, cantar (...) a rima introduz uma regulação que permite a voz se fazer ouvir” (BAIO, 1993).

(11) Tradução do exemplo no texto referido: “Seja porque elas não comem na presença do Outro. Frederico, por exemplo, se alimenta unicamente daquilo que ele encontra nos armários fora das horas de refeição. Na mesa, ele tagarela ao invés de comer” (BAIO, 1993).

(12) Tradução do exemplo no texto referido:  “Em certos casos, o Outro da demanda se encontra eliminado. A criança está então constipada, ela não dá nada; ou ainda, ela se executa até o lado do lugar previsto pelo Outro; talvez mesmo ela se isole para fazê-lo, como é o caso de Frederico, nos quartos e debaixo de vários edredões. Em resumo, ele se coloca ao abrigo do Outro” (BAIO, 1993).

(13) Instituição belga que propõe o atendimento de “crianças autistas, psicóticas e com graves perturbações da personalidade” (BAIO, 1999:66).

(14) Id. Ibidem. p. 66.

(15) Id. Ibidem. p. 67.

 

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