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Frequentemente, na clínica, portando nomes próprios de classificações nosográficas, chegam crianças denominadas "hiperativa com déficit de atenção", "deficiente", "lesionado", "autista". Antes de serem enunciados estes "nomes", há a introdução de uma posição que marca o lugar da criança diante deste diagnóstico: "Ela é..." Ou seja, "ela é autista". Isto marca uma diferença significativa no discurso dos pais, que produz, na criança, uma marca que a instala em uma rede onde o real toma corpo e a possibilidade de aceder a uma inscrição simbólica se fratura. Ela passa a ter como referência o "ser autista", "ser hiperativa", ser um nome que não a refere à linhagem familiar, mas sim a classificações médicas às quais os pais se referem quando são chamados a falar sobre seu filho.
Diante da impossibilidade de encontrar um traço que outorgue a seu filho com transtornos um lugar de saber, este é deslocado para o saber científico, onde aquele passa a ser marcado por significantes próprios do quadro em que foi enquadrado. Então, ele passa a ser, se é um autista, isolacionista, hiperativo, passivo, agressivo, repetitivo, com ausência de linguagem ou ecolalias, entre outros sintomas que marquem o quadro descritivo.
A inclusão do filho em uma categoria diagnostica e, consequentemente, em uma rede de significações marcada por descrições fenomenológicas dos sintomas, acaba por produzir, subjetivamente, efeitos reais. Encontrar um nome científico para os sintomas do filho, enquadrá-lo em um quadro nosológico, e a partir deste constituir referências que acabam por instalar-se desde o real, estabelecendo obstáculos ao processo de subjetivação.
No processo de constituição subjetiva, a criança realiza um trabalho que supõe a possibilidade de apropriação de seu nome próprio, ao que acede nos processos que vivencia no estádio especular. Lacan (1949), no escrito "O Estádio do Espelho como formador da função do [eu] tal como nos é revelada na experiência analítica", em uma passagem, afirma: "A assunção jubilatória de sua imagem especular pelo sujeito mergulhado na impotência motora e a dependência da lactância pelo homenzinho neste estádio de infans nos parecerá desde então manifestar, em uma situação exemplar, a matriz simbólica onde o [eu] precipita-se em uma forma primordial antes de se objetivar na dialética da identificação ao outro e antes que a linguagem lhe restitua, no universal, sua função de sujeito." Nesta passagem fica marcada a posição que a criança pequena assume, partindo do universo simbólico que é suporte do processo de subjetivação psíquica, atravessando a captação especular própria deste estádio, assumindo seu lugar no social, apropriando-se do nome que recebeu de seus pais. Passa a nomear-se desde a primeira pessoa. Inscreve-se a possibilidade de metaforização, onde seu nome passa a ser referido ao eu em posição de atravessamento simbólico, ou seja, ao que Lacan refere como sendo a posição do je. É notável a passagem que as crianças pequenas fazem da referência a si próprias enunciada na terceira pessoa, nos primórdios da aquisição da linguagem, à enunciação de seu nome na primeira pessoa.
Quando os pais observam que seu filho não acede à linguagem ou não se apropria dela subjetivamente, caso das ecolalias, é comum que se instale a busca de ajuda, e de um diagnóstico "O que ele tem? " - endereçada aos médicos. É neste momento, no qual a criança deveria encontrar-se nos primórdios do processo de subjetivação, construindo os alicerces de sua imagem corporal, do eu e da linguagem, que vem do Outro, no social, pela via da palavra médica, a inscrição de um nome ao qual seus pais se agarram na tentativa de suprimir a angústia que os sintomas de desorganização de seu filho provoca.
Assim como hoje as marcas dos objetos são falicizadas no social, as marcas diagnosticas acabam por ser inscritas nesta via narcísica, onde a criança com sintomas de desorganização psíquica é levada a portá-las ao circular no social, sem que aí estejam implicadas subjetivamente. É como se "ser autista" bastasse. Palavra que tem seu lugar inscrito no social, com as devidas descrições diagnosticas, programações via Internet, e instituições afins, todas voltadas para o "indivíduo autista". Posição da corrente psiquiátrica americana, com extensões mundiais. Anacronismo, já que no autismo, não há sujeito. Alfredo Jerusalinsky, em seu trabalho " Para uma Clínica Psicanalítica das Psicoses" ( 1996), afirma que "não se constitui no autismo isso que podemos chamar de estrutura mínima, que é a estrutura do fantasma. É esse o único quadro clínico, a única forma de funcionamento mental, em que não há fantasma." Ou seja, a posição da criança com autismo é justamente a de "não ser". Ali onde o Outro lhe confere uma demanda, ela é mestre em se excluir, se colocar fora. Assim, permanece em sua posição: fora do campo do falar, da linguagem, do olhar, do social. Ficam fora, mas ao mesmo tempo inseridos em um campo imaginário que para eles foi constituído. O de ser autista, com os traços que devem ter.
O pai de um menino que chega à clínica com o diagnóstico de autismo, quando escuta a afirmação de que seu filho não é autista, pergunta: "Até agora a gente chamava ele de autista. E agora, o que é que ele tem? Como é que vamos chamá-lo? Como vamos chamá-lo?" "Daniel", lhe respondo. O pai deste menino se emociona muito, e diz que até então seu filho sempre tinha sido tratado como autista. "Em todos os lugares que tinha ido o chamavam de autista". Na semana seguinte, novamente em uma entrevista com os pais, eles contam que o menino, em casa, passara a olhar-se no espelho dizendo: "Daniel. Daniel.", apontando-se no peito, com o dedo indicador. Momento marcante, onde a partir da possibilidade de inscrição significante que seu nome passa a assumir no discurso parental, e ao mesmo tempo da suspensão do nome "autista", este menino passa a ensaiar sua construção subjetiva podendo tomar como referência seu corpo, nele traçando seu nome próprio, "Daniel". Ainda em posição de alienação apresenta um quadro de psicose -, mas não mais na de apagamento subjetivo a que era jogado por meio de um diagnóstico equivocado. A seu nome, busca traços que teçam uma rede que, neste momento, se encontra fragmentada nas palavras que escuta do outro, sem a possibilidade, ainda, de uma sustentação simbólica. O que não quer dizer que esteja ocupando uma posição de exclusão subjetiva que é própria do autismo. Entre as várias palavras que escuta, capturou seu nome, e o enlaçou a seu corpo, diante do espelho. Operação impossível para uma criança que apresenta o quadro de autismo.
Podemos, então, nos perguntar acerca da posição que uma palavra, referida como diagnóstico, pode assumir para os pais e seus filhos. Inúmeras vezes encontramos crianças que encontram suas vidas marcadas por estas classificações que obstaculizam seu desenvolvimento, assim como o exercício que os pais possam vir a fazer de suas funções. A partir do diagnóstico que a criança recebe, seus pais passam a buscar, no discurso científico, um saber a respeito de como educá-los.
A mãe de um menino diagnosticado com o quadro de autismo, dizia, em uma entrevista, que havia lido que as crianças autistas gostam muito de ficar nos cantos do espaço em que habitam. Ela, então, passa a viabilizar, na vida de seu filho, sua circulação por lugares onde ele possa ficar "nestes cantinhos que eles tanto gostam". Na clínica, obviamente, ele seguidamente se encolhia em cantos das salas. Sabendo do imperativo da fala materna, "ficam nos cantos", lhe digo, quando se encolhe no canto de uma sala: "Não precisas ficar nos cantinhos, podes ir para onde quiseres." Ele imediatamente se levanta e sai caminhando na direção do pátio. O que aí se observa é que os pais colocam seu filho no lugar que é atribuído ao "autista", consolidando uma posição que poderia ser transitória. Ou seja, "criam autistas ", fundamentados no saber técnico que constrói pautas de desenvolvimento a partir do comportamento.
No campo psicanalítico, a leitura do autismo se estabelece a partir da posição subjetiva que a criança assume em referência ao do campo da linguagem, ou seja, nestes casos, fora dele.
São conhecidas as referências aos sintomas que são próprios do quadro de autismo, e as primeiras descrições, elaboradas por Leo Kanner (1946). Do ponto de vista fenomenológico, o isolamento, o balanceio, a recusa à entrada no universo social e da linguagem, as ecolalias, são traços conhecidos e reconhecidos em crianças com esta posição. Hoje, observa-se que com o incremento das informações acerca deste quadro, assim como a crescente proliferação de instituições para autistas, os pais acabam por encontrar pautas de desenvolvimento programadas próprias para estas crianças e aplicá-las em sua vida cotidiana, com a certeza de que o saber aí estabelecido vai levar seu filho a aceder ao desenvolvimento pleno. Mas, detalhe, a um desenvolvimento caracterizado como próprio de uma criança autista.
Temos recebido em nossa clínica, hoje, crianças diagnosticadas com o quadro de autismo, muitas vezes estabelecido equivocadamente, e mesmo quando correto, apresentando o efeito de obstaculizar, nos pais o exercício das funções parentais. Em um quadro onde não há inscrição imaginária, onde a mãe não encontra sua possibilidade de exercer a função que lhe cabe, se instala uma impossibilidade dada pela atribuição, que esta passa a fazer, de que o saber a respeito de seu filho é estrangeiro aos laços sociais dos quais faz parte, e encontra-se pautado no saber científico. Esta atribuição de saber que é deslocada para o campo comportamental, descritivo, passa a gerar um fosso ali onde já há um vazio. A mãe passa a não se autorizar a exercer sua função, passa a assumir uma função terapêutica, o que faz ruírem todas as possibilidades que estas crianças teriam de nelas encontrar os objetos de desejo capazes de armar sua construção subjetiva. estas crianças são, então, condicionadas, e criadas dentro do campo imaginário do que deveria ser um autista, e a partir de traços que lhes são característicos. Ficam instaladas nesta posição, aí objeto do olhar materno. Posição que provoca um efeito desorganizador ao extremo, onde a criança mergulha no autismo que do social acabam por lhes impor. Buscar o isolamento, não olhar para os outros, não se comunicar, não brincar, gostar de aparelhos eletrônicos, ter excelente memória, escolher seletivamente os alimentos, ser hiperativo, são alguns dos sintomas que caracterizam o chamado "espectro do autismo", dentro da concepção psiquiátrica. Podemos pensar seriamente nos efeitos que se produzem nestas crianças, que passam a ser objeto de planos de intervenção, e não ocupando o lugar que sim, se fraturou, ou seja, o de ser objeto de desejo do outro. Ser autista, ou estar no autismo, são condições que marcam diferenças radicais quanto ao trabalho a ser realizado junto a estas crianças. Na primeira, trata-se marcar as crianças com sintomas e traços e a partir destes estabelecer pautas de tratamento para o autismo. Ou seja, programas que a partir do comportamento a criança passe a adquirir funções. Na segunda, trata-se da consideração de que a possibilidade de escolha da criança, ou seja, de que estar imersa no autismo, é uma posição, que requer uma intervenção psicanalítica precisa, e não treinamentos que a mantenham no autismo, e que ignorem absolutamente a rede simbólica da qual ela pode vir a fazer parte, a partir da história de sua família. Pois esta, sim, existe, fala, e é a principal via de entrada no universo imaginário e simbólico por ser constituído por estas crianças. Oferecer o espelho da cultura, atravessá-lo com palavras e inscrever um nome ali onde há um diagnóstico, é trabalho dos pais e familiares das crianças. Sem isto, há o risco da alienação em uma rede de significações que se repete em torno de signos unívocos e vazios, não restando a elas outro caminho a não ser o do automatismo do comportamento a elas atribuído.
Bibliografia:
Jerusalinsky, Alfredo Para uma clínica psicanalítica das psicoses - Revista Estilos da Clínica, n.1, 1996, Instituto de Psicologia da USP, São Paulo.
Lacan, Jacques O Estádio do Espelho como formador da Função do [Eu] tal qual nos é revelada na experiência psicanalítica, em Cadernos Lacan, parte 1, publicação interna da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, 1995, Porto Alegre.