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Número 5 - Junio 2002
A exclusão da infancia
Ana Marta Goelzer Meira

A infância contemporânea apresenta novas formas de expressão. Quando nos referimos à travessia que as crianças realizam para, neste momento, se apropriarem do mundo e nele marcar seus passos, observamos que o brincar é uma das ferramentas básicas que sustentam este trabalho psíquico.

Na contemporaneidade, o brincar vem apresentando transformações ali onde as crianças ensaiam as cenas do que virão a ser e do que fazer com o que delas é esperado pelos pais e pela cultura. Poderíamos dizer que a infância é um tempo de espera, onde o "ser como os grandes" é um horizonte. É neste tempo que as crianças vão marcando sua trajetória a partir dos traços identificatórios que apreendem do universo parental e social.

Sabemos, a partir das contribuições da psicanálise, que o brincar é a via que as crianças encontram para metaforizar sua relação com o Outro. Nos jogos de faz de conta, elas colocam em jogo os ideais parentais e sociais que as marcam.

A sociedade contemporânea é marcada pelo culto aos objetos. O consumismo exacerbado rege o tecido social. Os efeitos do capitalismo, onde o objeto assume primazia sobre o sujeito são constatados em várias reflexões e trabalhos atuais. As crianças não encontram-se em um mundo à parte, ou seja, não encontram-se imunes a estes efeitos. A posição que ocupam frente ao discurso social que lhes demanda que comprem os melhores brinquedos, de forma infindável, é, na maioria dos casos, de aderência. Encontram-se mimetizadas a esta posição que coloca que, para brincar, devem fazê-lo com o objeto que para isto é designado como sendo o melhor, o mais moderno. As mensagens publicitárias dirigidas ao público infantil são mestres em dirigir seu olhar e escuta ao que apontam como sendo o próximo e melhor brinquedo a comprar. Próximo, na medida de um ciclo sem fim. Mal elas ganham o tão prezado brinquedo que tantas vezes viram ser oferecido na TV, já há outro a comprar. Neste ponto, podemos ver a evidência do que está aí em jogo: a posse de objetos, e, em segundo plano, brincar com estes.

No atendimento psicanalítico de crianças com problemas de desenvolvimento, que apresentam desde sintomas neuróticos até os sintomas mais graves, próprios das psicoses e autismos, tem se evidenciado que o brincar encontra-se em transformação, e que a posição da criança diante dos objetos assume novas formas, onde esmeram-se em desenvolver um saber acerca dos objetos e de seus atributos. Este saber acaba por ter primazia sobre a construção de um saber acerca de sua posição subjetiva diante do mesmo. Ou seja, na infância de hoje, observa-se fraturas evidentes no brincar, que acabam por colocá-lo em uma posição à deriva do processo de subjetivação, que acaba por fundar-se em uma rede narcisista onde o que cada um possui é o atributo de ser.

A esta posição, que não é somente ocupada pelas crianças, mas também pelo lugar em que isto se opera desde o social, nomeio exclusão da infância . Posição que no discurso social relega a um plano de exclusão o que seria o suporte da constituição subjetiva, o brincar, que é o que sustentará sua relação com o Outro e com o mundo.

A fragilização que encontramos em inúmeras crianças hoje, fala desta fratura do tecido próprio do brincar. A crescente pedagogização que nas escolas se confere ao brincar, colocando-o como meio de introduzir conceitos cognitivos é uma das faces desta posição. As crianças, hoje, encontram-se incessantemente remetidas à demanda de responder pela via da inteligência diante de qualquer aproximação com os objetos. Raras são as oportunidades que tem de brincar, simplesmente brincar com estes, sem que ali sejam invadidas pelo olhar e pelas interpelações dos adultos. Em recente reportagem da Revista Isto É (2001), "Vamos brincar?", esta constatação é exposta no depoimento de uma psicopedagoga, que refere-se à constatação da impossibilidade subjetiva que as crianças apresentam de brincar sozinhas, entre si. Revela que estão sempre em busca de um adulto que "supervisione" suas brincadeiras. Obviamente não podemos fechar os olhos a esta questão, e deixar de pensar que este sintoma que as crianças vem apresentando tem, no mínimo, uma via que encontra-se atrelada ao discurso parental e social. As crianças, hoje, não são convocadas a brincar – basta, para elas, ter brinquedos. O discurso dos meios de comunicação de massa as mergulha na mediocridade de mensagens vazias que apenas lhes oferecem objetos a desejar. E nas escolas, elas aprendem que os brinquedos tem cores, formas, são classificáveis, seriáveis, podem manter relações de correspondência, podem se somar, subtrair. E onde podem exercer isto que hoje se poderia nomear como sendo o direito de brincar?

É neste universo de massificação e consumo que as crianças modernas encontram-se. E as crianças que chegam às escolas e creches encontram-se imersas nestes sintomas. Mesmo que ainda não falem, que tenham um ano de idade, já estão presas a esta rede que, no discurso parental enuncia que, a elas, "nada deve faltar" 1. Não raro estas pequenas crianças, que ainda encontram-se realizando o árduo trabalho psíquico de se perguntar quem são para o outro, ou sobre as formas imaginárias de seu corpo - remetidas ao olhar do outro que as marca – já apresentam sintomas de agressividade, hiperatividade, e fragilização. Em consonância com o discurso televisivo, ao qual já assistem, passam a pedir incessantemente aos pais que lhes ofereçam o que a eles não pode ser inscrito na dimensão da falta. Mesmo os pais de crianças de classe baixa se esmeram em dar aos filhos isto que, supõem, lhes falta. Sabemos que mesmo vivendo em condições de miséria, as crianças tem à sua disposição aparelhos de televisão, e encontram-se marcadas por este discurso que, obviamente, encontra-se em jogo também em outros espaços sociais e urbanos.

O brincar revela-se, desde os estudos psicanalíticos, como sendo a mola mestra através da qual a criança coloca em jogo, desde os registros simbólicos e imaginários, os ideais que os outros lhe outorgam, assim como o que do discurso parental e social apreendem. Traçam no brincar os contornos da vida familiar e social, desde o seu olhar. Ali podem repetir, horas a fio, cenas que simbolizam suas vivências com o outro. 2 Ali podem se perguntar sobre o que são para o outro, sobre seu lugar diante da sexualidade, sobre as cenas de sua vivência familiar, elaborando sua própria versão. É através do brincar que as crianças podem construir versões a respeito do vir a ser, colocando em jogo, ao mesmo tempo, as formações subjetivas que estão nela se fundando. É neste momento que estas crianças, que encontram-se em um processo de constituição subjetiva, ingressam nas escolas. Só que estas, ao ingressarem nas instituições escolares, são, de forma crescente, confrontadas, desde pequenas, com a demanda pedagógica que exclui, do campo de sua intervenção, os processos psíquicos que encontram-se em jogo na subjetivação que está em curso. Escutamos, hoje, desde diversos lugares, que "educação é educação". E quem está ali diante do professor? Um robô? A compartimentalização a criança que a criança é remetida só tem como efeito sua fragilização e fragmentação. Quem aprende a falar, a caminhar, a cantar, a desenhar, a escrever, a ler, sem estar remetido ao desejo do outro?

A única posição que encontramos nas crianças que encontra-se remetida à exclusão do desejo do outro e, portanto, da linguagem, é o autismo. Particularmente, nestes casos, evidencia-se sua exclusão do universo escolar, pois seus sintomas geram desconforto aos professores, aos colegas, e seus pais. Em uma sociedade que cultua a perfeição, defrontar-se com uma criança que não fala, não registra a palavra do outro, é hiperativa, faz xixi e cocô em qualquer lugar, é algo gerador de extrema angústia. Em nome da inclusão, os pais destas crianças as tem levado à escola. Na maioria dos casos, o final da cena é sempre o mesmo: os colegas se assustam, os professores não tem condições de contê-las, os pais queixam-se do "mau exemplo", dos "riscos de agressão", "das perguntas que os filhos fazem em casa sobre elas". Uma destas perguntas foi feita por crianças de uma turma onde uma menina de 4 anos, com autismo, ao entrar na sala de aula, jogou os brinquedos no chão e pisou em cima deles: "Professora, por que ela pisa nos brinquedos?" Pergunta que revela a posição das crianças – não perguntaram "por que ela é assim?", mas sobre o ato de pisar nestes objetos que a cultura tanto preza. Justamente, a posição da criança com autismo é a de exclusão, a de se colocar do lado de fora do universo social. Suas idas à escola acabam com o retorno para casa. Ficam sem lugar, ainda mais quando apresentam quadros de deficiências múltiplas. Por que, mesmo que venham a se organizar psiquicamente, não há escola, nem especial, que aceite uma criança que não é só deficiente auditiva, por exemplo, mas que apresenta outras deficiências associadas. Mais uma vez, a fragmentação que rege o social revela seu sintoma.

Hoje, há uma crescente setorização que se funda sob a égide da especialidade. E estas crianças, que não são meras peças de uma engrenagem, são tratadas como tal, e acabam por ser excluídas da circulação social. Ou encontram lugar em instituições que se regem por uma via de condicionamento das mesmas, transformando-as em seres desubjetivados, completamente mimetizados ao outro.

Desde a ótica psicanalítica, o lugar de uma criança encontra-se na possibilidade que ela tenha de realizar a travessia de sua infância apropriando-se, passo a passo, da linguagem, para poder estabelecer laços com o outro em que venha a colocar em cena seu desejo. A esta via, o social, hoje, resiste. Resiste em função da demanda de perfeição a que o sujeito é remetido. Sendo o inconsciente a marca de uma falta, sobre isto que falta, sobre isto de que não se sabe, não se pode falar. Os sintomas de crianças psicóticas ou autistas remetem a este não saber de uma forma mais gritante. Desvelam os sintomas sociais e parentais ali onde eles apresentaram fraturas. O discurso das crianças psicóticas é testemunho da rede dos ideais parentais e sociais. É freqüente escutarmos crianças com estes quadros psíquicos graves recitarem as chamadas publicitárias, ou falas de personagens de desenhos animados, sem cessar. A ecolalia que revela-se desde a posição mimética ao outro que ocupam, é a versão literal do discurso social. A intervenção psicanalítica, nestes casos, dirige-se à via de possibilitar à criança o trânsito para a constituição metafórica, referida à posição paterna, ou não, onde ela possa falar desde um lugar em que não esteja presa à alienação imaginária.

O processo imaginário é marco da constituição do eu, enlaçado ao registro simbólico. Neste entrecruzamento entre os ideais a que a criança tem referência - imaginários – e o discurso que os cobre – simbólico, se fundam as identificações, que na travessia da infância se constituem. Para fundar a posição subjetiva desde a qual estabelece laços com o outro, a criança necessita, visceralmente, de palavras. Não só de objetos. São as palavras e o olhar que a mãe dirige à criança estendendo seus braços e olhando para ela, que fazem a criança ensaiar seus primeiros passos. É dando estes passos que a criança olha para as outras, em busca do que virá a ser. Os laços com os semelhantes são, também, fundantes. Esta é uma das importantes funções da escola infantil – propiciar, às crianças pequenas, o ensaio dos primeiros laços sociais. Podemos observar que uma criança que apresenta um quadro de deficiência – seja qual for – buscará, neste universo, um semelhante em relação ao qual se espelhar. As recentes propostas de inclusão tem, muitas vezes, abortado este processo, nestas crianças, que encontram-se ainda fundando a imagem corporal e o eu. Justamente no momento em que a convivência e o estabelecimento de laços com o semelhante é fundante, não encontram, nas classes regulares, outro colega que apresente deficiência e que possa transitar com ela neste conturbado processo pedagógico a que é chamada a ocupar. Onde estas crianças podem colocar em jogo este processo psíquico que deve ser levado a termo ali onde os laços sociais se estabelecem? Muitas vezes, o efeito do imperativo de entrada em uma escola regular acaba sendo paradoxal: a criança psicotiza, se fragmenta psiquicamente, é excluída no preciso ato de sua inclusão. Porque encontra-se submetida ao imperativo social que ignora completamente qualquer possibilidade de falha no outro, portanto, em consonância com isto, deve agir como se fosse uma criança normal. O custo disto, para seu psiquismo, é alto, assim como para os professores e colegas. Mas, rege a inclusão, todos devem integrar-se às escolas regulares. Sabemos que os próprios professores, hoje, tem críticas a esta posição unívoca, e tem enfrentado sérios problemas em aula em função da inclusão de crianças que apresentam alterações graves. O que acaba por incrementar a crise que se instala na escola em função disto é a exclusão de qualquer profissional que não seja pedagogo. Aos psicólogos ou psicanalistas, que tradicionalmente poderiam intervir em conjunto com os professores e mesmo com os colegas destas crianças e seus pais, é excluída a possibilidade de trabalhar na direção de avaliar o que está em jogo nos sintomas da criança e da instituição. Mais uma vez, o imperativo social coloca em cena a fragmentação a que a criança hoje é submetida. Ela acaba tendo que ocupar uma mesma posição que a coloca no lugar de instrumento do outro, de objeto. Que deve submeter-se aos imperativos de inclusão sem que seu desejo e trajetória de singularização seja levado em conta. A Declaração de Salamanca sobre Princípios, Política e Prática em Educação Especial, elaborada na Conferência Mundial de Educação Especial, realizada em junho de 1994, estabelece os princípios da educação inclusiva. Neste documento, afirma-se que "os portadores de necessidades educacionais especiais devem ter acesso à escola regular, que deveria acomodá-los dentro de uma pedagogia centrada na criança, capaz de satisfazer a tais necessidades." Mais adiante, convoca os governos a que "invistam maiores esforços em estratégias de identificação e intervenção precoces, bem como nos aspectos vocacionais da educação inclusiva; garantam que, no contexto de uma mudança sistêmica, programas de treinamento de professores, tanto em serviço como durante a formação, incluam a provisão de educação especial dentro das escolas inclusivas."

Ou seja, no processo de inclusão de crianças com quadros de deficiência, quadros psíquicos graves, meninos de rua, crianças que trabalham e são escravizadas, a intervenção a ser realizada deve ser efetivada com o estabelecimento de trabalhos em equipe, onde o pedagogo esteja trabalhando em conjunto com outros profissionais. Sabemos das dificuldades que as instituições que intervém junto a crianças que trabalham, muitas vezes em regime de escravidão enfrentam quando colocam este processo em andamento. Inúmeras crianças acabam voltando para o trabalho, fugindo das escolas inclusivas, que muitas vezes são montadas especialmente para elas. O que está em jogo nesta fuga é a busca de um traço que as marca para além do que o discurso pedagógico opera. Há processos identificatórios em jogo, de relevância psíquica, onde o laço ao explorador se mantém mais forte do que ingressar em uma escola que para muitas não faz parte de seu universo cultural. Este é apenas um dos exemplos da necessidade do trabalho conjunto nos processos de inclusão.

 

As crianças da guerra

No outro lado do mundo vemos, com as imagens transmitidas da guerra no Afeganistão, inúmeras crianças portando armas – de brinquedo? – e gritando palavras de ordem enunciadas pelos adultos. Desde que lugar subjetivo estas crianças ocupam este lugar? Mesmo fazendo parte de outra cultura, os processos de estruturação psíquica que ali estão em jogo são os mesmos que em qualquer lugar. O que muda é o discurso, a cultura, a veste imaginária com que fundam seus laços identificatórios. Estas crianças encontram-se colocando em jogo o que o Outro social lhes aponta como referência. Não há uma menina nestas manifestações – o lugar das mulheres é em casa. Este ditame cultural é colocado em jogo pelas crianças. Observa-se, nestas cenas, a ausência de interdição dos adultos em relação ao uso de crianças na guerra. Fenômeno mundial, que provoca, naqueles que junto a este campo intervém, a pergunta acerca dos transtornos psíquicos que estas crianças acabam apresentando.

Há, hoje, várias ONGs dedicadas ao trabalho de erradicação do trabalho infantil 3, e também do uso de crianças como soldados, nas guerras. War Child e Child soldiers são algumas destas. Conforme informa a ONG War Child, no momento há em torno de 30 guerras no mundo, e na última década "1,5 milhões de crianças morreram nas mesmas. Quatro milhões tornaram-se incapacitadas, e 10 milhões traumatizadas. As feridas psicológicas severas que estes conflitos infligem às crianças podem marcá-las por toda sua vida". 4 São freqüentes as intervenções terapêuticas realizadas junto a estas crianças, a partir do trabalho destas ONGs.

War Child foi fundada em 1993, por dois jovens cineastas ingleses que foram realizar um filme sobre o papel dos artistas na guerra, na Iugoslávia. Impressionados com o uso de crianças na guerra, resolveram aí intervir. Compraram velhas padarias móveis do exército inglês, e passaram a trabalhar nas zonas de guerra na Europa, inicialmente na Iugoslávia. Os habitantes da região em que se encontravam eram os responsáveis por seu funcionamento, o que até hoje ocorre. Esta organização se estendeu de tal forma que hoje abriga um centro musical na Bósnia, onde há várias atividades terapêuticas sendo desenvolvidas, e vários outros centros em diversos lugares onde há guerras – Sarajevo, Kosovo, Serra Leoa, África do Sul, Sudão, Chechênia, Paquistão. São desenvolvidas várias atividades com as crianças, desde a arte, a música, a terapia, a assistência médica e alimentar. No momento, planejam sua entrada no Afeganistão, para lá intervir frente ao uso de "child soldiers". As crianças são usadas nas guerras em função de justificativas que encontram-se articuladas a seu uso também no trabalho: são consideradas dóceis, não exigem pagamento por seu trabalho, são hábeis no manuseio das armas. Já os depoimentos das crianças revelam outra direção: elas afirmam que a única forma de sobrevivência frente à guerra, é aliar-se aos exércitos combatentes, pois suas famílias se fragmentam, perdem seus pais. O único meio que encontram de obter comida e abrigo diante da perda de suas casas e referências é submeter-se a esta posição. Aí intervém as ONGs. Um comandante do grupo armado República Democrática do Congo, em entrevista à Child Soldiers, diz que: " as crianças dão bons guerreiros, porque são jovens e querem aparecer. Eles acham que é tudo um jogo, portanto eles não tem medo.(p.2)" 5 O ciclo inicia-se, geralmente, quando as crianças tem 7 anos: são treinadas como mensageiras, espiãs, carregadoras de munição e alimentos. Aos dez anos, são consideradas hábeis o suficiente para portar armas. Ismael Baeh, agora com 17 anos, fala de sua experiência como soldado, desde criança: "Quando a guerra chegou onde eu vivia, eu estava na escola. Eu fugi com alguns amigos, mas todos fomos pegos. Não tinha nada que eu podia fazer nesta situação. Ou eu me juntava ao exército de Sierra Leoa, ou eu morria. Era a única coisa que eu podia fazer para sobreviver."(p.2, Child Soldiers Newsletter, 2001)

As crianças de nossa terra estão perguntando sobre a guerra no Afeganistão. Se estivermos atentos a seus movimentos e comentários, poderemos observar sua inquietude frente ao que está acontecendo em um mundo que era inatingível. Buscam armas de brinquedo, aviões, blocos para montar torres, formas de encontrar uma via metafórica através da qual possam falar e elaborar o que vem acontecendo em seu mundo. Aos adultos, cabe se perguntar que posição tomar. Se somente aderir ao discurso social, fazendo com que "deponham as armas de brinquedo", ou "que doem um dólar", como foi feito nos EUA, ou conversar com elas sobre o que está ocorrendo. Quem sabe, as perguntas das crianças – que, aliás, só serão feitas se estivermos dispostos a escutá-las –, não sejam um meio de estabelecer com elas um laço que não seja marcado por objetos a possuir, mas por palavras que falem sobre o que até então não havia sido falado. Que o mundo não é só feito de Barbies, Pokémons, Digimons, gameboys, videogames. Ou seja, que há diferenças na cultura, que fazem parte de uma história, para mais além do que o sujeito moderno, pautado pelo narcisismo, supõe.

Podemos fazer uma analogia desta situação quando os pais tentam apagar a diferença que se instala quando uma criança com quadros psíquicos graves ou deficiências entra na escola de seus filhos. Não falam com elas sobre isto, mas sim, exigem providências da direção para que a retirem da escola antes que seu mau exemplo contagie seus filhos. Por sua vez, as crianças deficientes, a serem integradas, sofrem a violência de serem expostas a um campo de batalha sem que tenham condições psíquicas para enfrentar a discriminação a que acabam expostas cotidianamente. A idolatria que hoje se dedica às crianças faz com que se tente encobrir para elas qualquer conflito. Poupá-las do confronto com a diferença, apagando-a, faz com que se mantenham no mesmo universo ilusório ao qual encontram-se aderidas pelos meios de comunicação de massa – acabam sendo excluídas da possibilidade de colocar em jogo suas perguntas: as perguntas que são próprias da infância.

Muitas crianças hoje, em Nova York, encontram-se em estado traumático. Para elaborá-lo, desenham, são convocadas a falar sobre o que aconteceu, ocupando um lugar diferente do que até então lhes era outorgado. Viviam em uma redoma de vidro, cercadas por um universo narcísico que excluía a possibilidade de que algo rompesse este ciclo. Os comentários que se seguiram ao atentado no World Trade Center são elucidativos desta posição: "Parecia um filme!" Ou seja, a referência evocada é a de uma imagem ilusória, não simbólica. Obviamente em um momento traumático o sujeito ainda não tem condições psíquicas de sustentar simbólicamente o que lhe avassala. Mas os filmes americanos anunciavam estas cenas de violência e os desenhos animados e as fitas de vídeo são tramas plenas de atos de violência. Sua vivência marcada pelo universo imaginário das cenas que assistem cotidianamente entrou em consonância com um fato da realidade.

Há movimentos que em prol dos direitos da criança, e da paz, pedem às crianças que deponham suas armas de brinquedo. Devemos pensar neste ato. É no brincar que as crianças elaboram psiquicamente o que vivenciam. É ali, no brincar, que um imperativo de depor armas se impõe a elas. Mas e o resto do universo que as desfila sem cessar? As armas continuam estampadas no seu cotidiano – nas vilas, na marginalidade, nas cenas de guerra, nas brincadeiras com games, nos filmes, nos desenhos animados. Caberia pensar que um ato simbólico, a favor do oferecimento à criança de um outro laço social que não seja marcado pela irrupção real da violência , seria possibilitar, a elas, que possam viver sua infância em paz. Nada é mais apaziguador para uma criança que poder brincar longe de imperativos de qualquer ordem. O aprender, virá em consonância com este que é o campo de ensaio do futuro, para as crianças. Subtrair da criança a possibilidade de brincar, retirando-lhe a possibilidade de realizar o trabalho psíquico de fundar-se como sujeito, é excluir a infância de seus avatares. Aos adultos, "os grandes", como dizem as crianças, é que cabe depor as armas e instalar uma rede simbólica que sustente sua pulsão de domínio. E não supor que o ato de privar a criança de seus brinquedos vá direcioná-las frente a uma vida pacífica. Vemos, na Guerra do Afeganistão, apenas um dos exemplos de que as crianças podem não brincar, não estar incluídas nas escolas, mas aprendendo a ser como seus pais, guerreiras, e a portar armas que não são de brinquedo. Poderíamos perguntar a uma criança do Ocidente o que ela pensa disto. Do que vê nas notícias: crianças na guerra. Elas terão o que falar. Talvez queiram brincar disto – aliás, os brinquedos oferecidos aos meninos são pródigos para isto: Comandos em ação, samurais, pokémons lutadores. Se não tem armas de brinquedo, tem estas outras armas. Quando não tem condições psíquicas de sustentar seu lugar simbólico diante do outro, como ocorre nas psicoses, podem sair correndo de casa a cada estrondo que escutem. Porque para eles a guerra pode chegar a qualquer momento em sua vida, em função da posição mimética que assumem frente ao outro. A mãe de um menino psicótico contou-me, na semana passada, este episódio. Este menino, de 10 anos, acha que vão jogar bombas em sua casa, ou por onde estiver. Não consegue ficar sentado na sala de aula, e sua professora encaminhou-o para atendimento psicanalítico. Quantos outros não estão na mesma posição? Correndo desesperados dos bancos escolares por não conseguir sustentar seu lugar diante da aprendizagem? A inclusão, neste ponto, deveria ser um movimento que, por princípio, levasse em conta que ali uma criança não está conseguindo viver sua infância. Obrigá-la a se portar como os colegas é instituir um imperativo de violência que pode, aí sim, gerar violência na realidade.

Se as crianças ensaiam o que virão a ser no futuro, que crianças estamos formando hoje?

Notas

1 No trabalho "Pela felicidade das crianças", Martine Lerude (1998) analisa esta posição parental.

2 O fort da, jogo que se inscreve na via da metaforização, é uma referencia primordial na constituição do brincar. No escrito Mais além do princípio do prazer, Freud analisa as cenas em que seu neto, vigiando atentamente os passos de sua mãe que se ausenta, repete o jogo onde, lançando um carretel longe, enuncia os fonemas que falam do processo de metaforização que aí se processa: "fort". Descreve com precisão estas cenas, que encontram-se marcadas pelo jogo de presença e ausência que se instala na relação com a mãe, desde seus primórdios.

3 No escrito Quando o trabalho é o brincar, exponho esta questão, que também é uma face dos processos a que a educação inclusiva se confronta na contemporaneidade.

4 Estas informações estão disponíveis no site da Internet www.warchild.org

5 Em www.child-soldiers.org/report2001/

Bibliografia:

Declaração de Salamanca sobre Princípios, Política e Prática em Educação Especial

Ismael´s Story em Child Soldiers News Letter – Coalition to Stop the Use of Child Soldiers, Londres, Setembro de 2001. – Disponível também no site www.child-soldiers.org

Freud, Sigmund – Mais Além do Princípio do Prazer, em Obras Completas, Vol III, Madrid, Ed. Biblioteca Nueva, 1973.

Lerude, Martine – Pela felicidade das crianças ou Como a terapia de criança pode algumas vezes permitir o crescimento dos pais, em O sujeito, o real do corpo e o casal parental, Salvador, Ed. Ágalma, 1998.

Meira, Ana Marta – Quando o trabalho é o brincar, em O valor simbólico do trabalho e o sujeito contemporâneo, Associação Psicanalítica de Porto Alegre, Porto Alegre, Ed. Artes e Ofícios, 2000.

Vannuchi, Camilo e Rita Moraes – Vamos brincar? – publicado na Revista Isto É, n.1671,10 de outubro de 2001.

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