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Introdução
Este trabalho é a consequência de reflexões do cruzamento de dois momentos distintos. O primeiro é a da minha prática como professora de educação infantil de uma escola do Município de São Paulo. O outro é o de leituras e discussões como cartelizante.
Como professora tive entre meus alunos (5 anos) um menino portador de Síndrome de Down. Ele é uma criança Portadora de Necessidades Especiais (PNE), entretanto, neste trabalho, não me restrinjo à sua deficiência mental e sim à sua dificuldade de aprendizagem, portanto ele é para nós, portador de necessidades educativas especiais (PNEE).
Como cartelizante, tive a oportunidade de discutir, à luz da psicanálise de orientação lacaniana, a inclusão, os problemas institucionais da educação, a segregação ... Tanto que o Cartel** denomina-se Psicanálise e Educação tendo como "+1" a livre docente da FEUSP, Dra. Leny Mrech.
A intersecção psicanálise e educação, tem sido para mim muito importante, pois nesta última observo fendas, inúmeras contradições, que muito tem me incomodado. E, para explicar estes buracos, a Pedagogia busca explicações usando, por empréstimo conceitos, termos, que fazem do professor e do aluno, seres humanos perfeitos, completos.
Sabemos que isto não acontece, não há o ser completo, a perfeição.E por existir a falta, acredito na possibilidade de fazermos uma leitura da educação, através dos conceitos psicanalíticos: a psicanálise nos aponta que sempre haverá a falta, sempre haverá a incompletude, sempre buscaremos algo, porque somos faltantes, e por isso desejantes.
Este trabalho apresenta suscintamente a Escola Municipal de Educação Infantil, o relato de caso, algumas reflexões com embasamento teórico de referenciais psicanalíticos de orientação lacaniana, seguido de reflexões finais.
A Escola de Educação Infantil
Para a LDB (Leis de Diretrizes e Bases), a educação infantil refere-se à etapa de desenvolvimento de 0 e 6 anos. Atualmente, cabe aos Municípios atender estas crianças em creches (0 a 3 anos), e em escolas de educação infantil (4 a 6 anos).
Desde 1996, as escolas de educação infantil devem desenvolver em seus currículos, programas educacionais que proporcionem às crianças uma educação de qualidade. A educação infantil, que abrange a faixa etária de 4 a 6 anos, equivale à primeira etapa da educação básica, onde todas as crianças poderão desenvolver as suas habilidades, brincando, interagindo no ambiente escolar.
O Relato de Caso: "Um pouquinho de Síndrome de Down..."
Um menino, V. , nascido em maio de 1995, portador da Síndrome de Down ,ingressa em uma EMEI (Escola Municipal de Educação Infantil) da cidade de São Paulo.
Após a reunião em que pais e professores se conhecem, a mãe vem até a professora e diz: "Professora preciso lhe falar que meu filho tem um problema, ele tem um pouquinho de Síndrome de Down... Ele passou pela APAE, e eles disseram que ele não precisava ficar lá, porque só tem um pouco de Síndrome!...(sic)".
Após ouvir a mãe e participar à direção, que desconhecia o caso, ficou estabelecido que o aluno freqüentaria a classe regular.
A criança na sala de aula, assim como nas demais dependências parecia um autômato, ou um boneco: ele era alheio a tudo e a todos. Não respondia quando era chamado. Não estabelecia relação com o outro. Era preciso levá-lo a fazer a algo, e mesmo assim permanecia indiferente a tudo e a todos.
A folha de sulfite parecia despertar-lhe da indiferença. Após amassar a sua, amassava a dos outros. Passado um tempo, acrescentou o jogá-la no lixo, depois de amassá-la.
Passou a solicitar a presença da professora. Ao se afastar dela perguntava para alguém mais próximo: "pofessora?" (sic), procurando-a, até que alguém o levasse de volta para ela.
A princípio os colegas começaram a perceber a necessidade de ajudá-lo, e o faziam tranqüilamente participando à professora, o acontecido. Claro, que muitas vezes reclamavam dele. Entretanto, a explicação da professora sobre a necessidade de todos ajudá-lo, os incentivava a colaborar nessa empreitada.Os colegas ensinavam-lhe o que fosse necessário, sempre sob a orientação da professora.
Percebeu-se a importância de atuar nomeando-lhe cada passo que dava, a cada acontecimento ocorrido . Sempre apresentando-lhe, nomeando-lhe objetos, ações e situações.
Seus olhos, antes vazios passaram a brilhar tênuamente. Sua fala antes reduzida à repetição do som final da última frase ou sílada , passou a revelar a emergência de algumas palavras. Assim, da ecolalia inicial o aluno passou a interagir de um modo mais adequado, buscando o outro para se comunicar, indo da indiferença ao interesse pelos colegas, professores.
O processo de interação se revelou de uma maneira mais acentuada à medida, que ele se olhava no espelho. Este passou a ser o objeto principal da sua atenção. fazendo com que ele buscasse sua própria imagem, continuamente. Frente ao espelho fazia caretas, como se estivesse conversando consigo mesmo. Outras vezes lambia a superfície desse objeto. Ainda, em outros momentos, olhava para os colegas através do espelho.
Seus desenhos, inicialmente garatujas desordenadas, foram ganhando alguns indícios de escrita: passou a fazer "serrinhas" por toda a folha. Ao entrar em contato com a escrita do nome próprio, passou a reconhecê-la. Ao ser indagado, dizia o seu nome corretamente. Pouco depois, passou a fazer traços que sugeriam algumas letras do seu nome.
Percebeu-se que V. passou a ter uma atuação cada vez mais próxima das outras crianças. Pois, seus gestos, o andar, o correr, antes atípicos, foram, pouco a pouco, dando lugar, a movimentos sensivelmente coordenados, desenvoltos. Desta forma, V. foi gradualmente, incluído, tanto na sala de aula, quanto em outras dependências escolares.
Algumas reflexões
Como professora pude observar muitas mudanças. Em tão pouco tempo, de fevereiro a agosto, houve uma grande diferença na maneira da criança apresentar-se dentro e fora da sala de aula.
Uma delas foi a mudança frente à presença do outro, principalmente o do outro, como um espelho, para o qual esta criança se apresentava, para quem ela demonstrava o desejo de ser acolhida.
Uma outra mudança foi a referente à sua posição: antes, V. era tal como um objeto para o outro. O fato de alguém interagir com ele, fazendo-o sujeito das suas ações, levando-o a parti cipar das atividades, acreditando nas suas possibilidades, desencadeou uma mudança na sua forma de se apresentar para o outro. Todos notaram a mudança,agora, sabiam o que ele queria ou não, o que gostava ou não.
A princípio ele se mostrava bastante arredio, apresentando dificuldades no relacionamento com os demais. Aos poucos, V. apresentou uma sensível melhora em relação ao comportamento anterior. Pode-se dizer que ele fez uma passagem da indiferença para a demanda de atenção e uma atuação mais participativa nas atividades propostas.
Um fato bastante significativo que percebi neste processo foi o da dificuldade de encontrar suportes teórico-práticos na pedagogia e psicologia para lidar com os alunos em geral e com os PNEE, em especial.
A Pedagogia, a Psicologia ainda apresentam como um modelo de ciência muito próximo ao da Medicina, fundamentadas em padrões de normalidade. Neste caso, o seguir essa trilha nos leva ao perigo de sempre reduzir o PNEE a um sujeito incapacitado.
Pesquisando para o meu trabalho, percebi que a Psicanálise busca um outro encaminhamento. Ela não se prende às classificações, não procura eliminar os obstáculos, tendo em vista a normalização do déficit da criança, ou ainda, um processo reeducativo. BORDERÍAS (1999:5) assinala que abordagem médica há : "... um sepultamento do inconsciente e a eliminação de todo vestígio da subjetividade do deficiente."
Maud Mannoni, psicanalista francesa, desenvolveu seu trabalho com crianças portadoras de deficiência mental, pautado nos ensinamentos de Jacques Lacan. Em seu livro A Criança Retardada e a Mãe, enfatizou a necessidade da própria criança saber sobre a sua deficiência. A autora propôs ser no próprio âmbito familiar, o localideal para a elaboração da questão "ser deficiente". Para ela, a criança deve ir além do significante familiar e não ficar paralisada com os significantes que sur gem a partir da sua deficiência, como por exemplo: "ela não pode", "ela não entende" ... (grifos nossos). Esse, sem dúvida, é um processo bem distinto daquele decorrente do diagnóstico médico onde a criança fica sem a palavra, muda. Todos falam por ela, a mãe, o médico, até o professor, os colegas...
Dizer que o PNEE não consegue fazer isso, falar aquilo, compreender aquilo outro, enfim colocar suas ações e falas no patamar oposto ao da normalidade, faz com que seja praticamente impossível ali emergir um sujeito.
A psicanálise revela que o sujeito não se encontra no sentido proposto pelo termo deficiente mental, que é onde muitos se apóiam para tentar apreender o PNEE como sujeito. O PNEE está além do sentido dos rótulos e das classificações. É ali que devemos tentar apreendê-lo como criança.
A pedagogia, psicologia com seus paradigmas sobre o comportamento infantil ou sobre o comportamento do PNEE, podem acabar bloqueando a possibilidade das ações e falas do PNE E. Pois, ao se atrelar o seu comportamento a um sentido prévio, corre-se o risco de acabar discriminando-o, segregando-o através da leitura das suas feições, atos ou falas peculiares.
LACAN formula, inicialmente com base na Lingüística de SAUSSURE, sua máxima: um significante representa um sujeito para outro significante. LACAN entende que há uma cadeia significante, onde o significante S2 no lugar de um significante S1 recalcado, faz advir o sujeito falante, ou seja, S2 representa o sujeito para o significante S1. O significante S1 só se torna desejável a partir do significante S2.
LACAN também se preocupou com as diferenças entre os sujeitos.
Buscando entender a deficiência, LACAN (1995:225), nas décadas de 50 e 60, desenvolveu o conceito de deficiência no âmbito estrutural. Ele concebia que no deficiente mental haveria uma holófrase, isto é, "não haveria (um) intervalo entre S1 e S2, fazendo com que a primeira dupla de significantes se solidifique, se holofraseie."
Em outros textos encontramos, igualmente, pontuações de LACAN em relação à deficiência mental: De uma questão preliminar a todo o tratamento possível da psicose (1998); Diretrizes para um congresso sobre a sexualidade feminina (1998) e Duas notas sobre a criança (1998). Destaca-se nessa elaboração teórica as considerações a respeito do simbólico que estaria contido na frase parental, a partir dos efeitos da posição da criança, em relação ao desejo materno.
Em 1970, o ensino de LACAN toma uma outra direção, é a chamada "segunda clínica". Trata-se, a partir daí, como pontua BORDERÍAS , de entender a deficiência como uma dificuldade do sujeito para se posicionar em relação ao discurso.
O que é discurso para Lacan?
LACAN, no Seminário III, As Psicoses (1992:78), nos responde: "... a noção do discurso é fundamental. Mesmo para o que chamamos de objetividade, o mundo objetivado pela ciência, o discurso é essencial, pois o mundo da ciência, que sempre perdemos de vista é antes de mais nada comunicável, ele se encarna em comunicações científicas. Mesmo que alguém tenha conseguido realizar a mais sensacional das experiências, se um outro não a puder refazer após a sua comunicação a respeito, ela de nada serve..."
Se procurarmos outras referências, na fala de LACAN sobre debilidade mental, encontraremos em diversos seminários, pontuações elucidativas para o nosso caso. Destaco aqui a do Seminário XV, O Ato Psicanalítico (mimeo:144): "... Em certos casos se emprega o termo pueril como se na verdade fosse se referir à criança quando se trata desses efeitos perda da faculdade. Obviamente sucede, como se há demonstrado em muitos lugares, que as crianças se encontram na debilidade mental por obra dos adultos..."
No Seminário XIX, Ou Pire (mimeo), LACAN estabelece ser deficiente mental aquele que se situa entre os discursos, "...chamo debilidade mental o fato de que um ser falante não está solidamente instalado em um discurso... não há nenhuma outra definição que se possa dar se não, a de estar à margem flutuando entre os discursos... para estar solidamente instalado como sujeito, há que se situar num discurso..."
Reflexões Finais
Após esse breve aporte teórico retornamos ao relato de caso, elaborando algumas hipóteses...
Se antes, a criança PNEE, não se posicionava como sujeito, não verbalizava, agora se mostra desejante e interagindo com o outro, reconhecendo-o, nomeando-o, procurando fazer vínculos.
Porém, o que faz a mãe nesse momento? Não o leva, diariamente, à escola como fazia até o mês de agosto. Telefona dizendo que não tem quem vá buscá-lo, ao final do período, e que por isso ele tem que faltar. Ao final do mês de setembro, ela o retira da escola.
Aqui podemos retomar o que Lacan, assinala ser muito importante a função desejante da família no processo de constituição do sujeito. Será que havia um desejo nesta mãe de que seu filho se constituísse um sujeito, de que ele pensasse, de outra forma? A resposta parece ser negativa.
A implantação da educação inclusiva em uma escola com os alunos PNEE, revela aí os seus limites. Não basta o professor de alguma forma desejar que a criança PNEE se constitua como sujeito. É preciso que todos também o desejem: pais, professores, colegas...
O vínculo professor-aluno é muito importante para a educação. Mas, é fundamental para a educação inclusiva, assim como as relações estabelecidas com os pais, professores, alunos e demais profissionais. É preciso que todos trabalhem juntos, que todos se assumam desejantes no processo. Pois, como revela MRECH (2001), a inclusão do PNEE é um processo contínuo, que tem que ser recriado a cada passo, por todos os envolvidos.
Os implicados no processo de Educação Inclusiva, encontrarão nesse registro a urgência de se trabalhar em conjunto. Pois, se desejam que os PNEE saiam do lugar em que se encontram aprisionado, deverão trabalhar lado a lado professores, pais, alunos, PNEE, psicólogos, psicanalistas ...
Aos implicados com a Psicanálise deverão atentar sua escuta à família, à escola, à criança, buscando entender as dificuldades da Pedagogia para lidar com os seus alunos PNEE.
A Escola, a família, ou a clínica deverá ouvir as crianças PNEE.
Assim, deverão ser oferecidas oportunidades para os PNEE se expressarem, para se constituírem como sujeitos, pois é somente através do vínculo com o desejo do outro, que os PNE saíram da condição de debilidade mental, tal como LACAN (mimeo:144) enfatizou, no Seminário XV, ao dizer: "...que as crianças se encontram na debilidade mental por obra dos adultos...".
Notas
Para melhor conhecer o conceito Cartel, ler KAUFMANN, Pierre. Dicionário Enciclopédico de Psicanálise o legado de Freud e Lacan (p.78-79). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996.
Referências Bibliográficas
BORDERÍAS, Andrés. Um caso de debilidade mental in Espacio de Investigación Madrileno. Seción de Madr id de la Escuela Europea de Psicanálisis. 1999.
LACAN, Jacques. Diretrizes para um Congresso sobre a sexualidade feminina in Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahaar Editor, 1998.
LACAN, Jacques. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose in Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahaar Editor, 1998.
LACAN, Jacques. Duas notas sobre a criança in Opção Lacaniana (nº21). São Paulo: Edições Eolia, 1998.
LACAN, Jacques. Seminário III As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahaar Editor, 1992.
LACAN, Jacques. Seminário XI Os quatros conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahaar Editor, 1995.
LACAN, Jacques. Seminário XV O ato Psicanalítico. MIMEO. São Paulo: EBP, s/d.
LACAN, Jacques. Seminário XIX Ou Pire. MIMEO. São Paulo: EBP, s/d.
MANNONI, Maud. A Criança Retardada e a Mãe. São Paulo: Martins Fontes, 1991
MRECH, Leny Magalhães. Mercado de Saber, O Real da Educação e dos Educadores e a Escola como Possibilidade. Tese de Livre Docência. São Paulo: FEUSP, 2001.
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Lingüística Geral. São Paulo: Editora Cultrix, 1995.