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... a teoria psicanalítica nos ensina: a palavra recalcada está intimamente
vinculada à violência e à dor. Não se fala o que dói e a violência silencia.
Mas sabemos também que a palavra silenciada se manifesta como sintoma.
Sergio Aldo Rodriguez (1988)O presente artigo tem por finalidade investigar na prática clínica através da Psicoterapia Breve Infantil no contexto da Clínica-Escola o acting out da encoprese como representante pulsional retido no fantasma parental denunciador de uma imagem incastrável da mãe. Fato esse precipitador da entrada pela criança em sua própria vivência edípica.
O acting é para a criança aquilo que se faz ou se pode fazer. Os pais é que portam o sintoma anunc iado no acting da criança. O sintoma é palavra pedindo por deciframento, é símbolo que comunica a um sujeito suposto saber ouvi-lo em busca de interpretação. O sintoma carrega em si uma dupla comunicação: a de reconhecimento de desejo e desejo de reconhecimento. Sendo assim se estabelece estruturado como linguagem metáfora e metonímia demarcada por um símbolo. Lacan in Ferreira (2004, p.76) faz a seguinte afirmação em relação ao sintoma:
Posteriormente Lacan (1975) vai situar o sintoma no Real, chegando mesmo a afirmar que o sintoma é "o que as pessoas têm de mais real".O sintoma é o efeito do Simbólico no Real. Portanto, o sintoma está fora do campo do Imaginário e fora das significações. Passa a definir o sintoma como "o modo como cada um goza do inconsciente enquanto que o inconsciente o determina". Portanto, sintoma passa a ser a maneira de gozar. E mais: "O que se chama um sintoma neurótico é simplesmente algo que lhes permite viver".
A atribuição do sintoma que a criança porta advém do que há de sintomático na estrutura familiar, aponta para a subjetividade materna, indica também o meio de acesso para a verdade do casal parental. Dado que a criança inseri-se na estrutura desejante da família ela é o resultado do desejo do Outro sua posição não é a de sujeito, mas de objeto do Outro; fato esse que ocorre no início da vida. Essa relação dual que fora estabelecido pela mãe/criança precisa ser rompida:
É através da linguagem que a criança ingressa na cultura na ordem das trocas simbólicas, rompendo o tipo de relação dual que mantinha com a mãe. Esse momento corresponde também à entrada do pai em cena e conseqüentemente à formação da família: é o momento do Édipo (Garcia-Roza, 2004, p.216)
Para que a criança não esteja predestinada a esse estado de fusão e de perfeição narcísica, faz-se necessário um acontecimento que estabeleça uma intervenção, um corte, o reconhecimento da Lei do Pai. A mãe através de seu discurso e do reconhecimento do pai como homem e como representante da Lei é que põe em marcha a dupla proibição feita pelo pai ao filho: não possuirá sua mãe, à mãe: não incorporará o seu rebento.
É através do acting out da encoprese que a criança escreve seu dilema em relação à alteridade. O objeto anal é utilizado como noticiador da ausência da metáfora paterna, ou seja, a mãe não faz o reconhecimento do Nome do Pai. A criança se faz evidente em ato através do "ultrapassamento da borda" sendo assim, o que está dentro do âmbito da visão é a falha de soltar o que provavelmente não seria dela. Na esteira desse pensamento tomamos a seguinte questão: Em uma Psicoterapia Breve com o tempo previsto de dezesseis sessões pode-se alcançar a remissão do sintoma da encoprese?
O encaminhamento de nossa questão se deu através do relato da queixa trazida pela mãe de K.: agressividade no ambiente escolar, masturbação exacerbada, dificuldade no controle dos esfíncteres. No pronunciamento da mãe suas lembranças em relação ao seu casamento se resumiam em suas atividades sexuais com o marido que não tinha hora nem lugar privado, pois em sua casa o único quarto que havia estava reservado ao casal e aos três filhos. Em seu relato deixava implícito o desvio de sua libido para o filho mais velho K. após sua separação do marido. Comparava-o todo tempo ao marido, ou a um certo jogador de futebol. A qualquer gesto do filho geravam-lhe desconfianças quanto a uma possível simulação de relação sexual.
A encoprese enquanto acting da criança revela que o Outro da pulsão anal demanda algo, logo, falta-lhe algo. A criança se legitima pela primeira vez em algo, ou seja, em um objeto causa de desejo da mãe. Portanto a mesma tem seu desejo obstruído, pois, fica presa nas malhas de uma ambivalência obsessiva, no dar ou reter o que o Outro demanda.
A mãe de K. dizia temer que os filhos fossem como ela, pois seus pais não mandavam nela, mesmo que eles dissessem não, ela fazia o que queria do mesmo jeito. Em suas saídas experimentou maconha, cocaína, e bebida alcoólica. Recentemente tomou calmante com bebida alcoólica, agrediu a filha de onze anos, acabou sendo denunciada. Constantemente vai até a delegacia por queixas diversas.
A direção de nosso trabalho consistia em escutar os pais e a criança, na transferência auxilia-los nas condições para edificação do sintoma para que se pudesse produzir corte e operar a castração. A mãe de K. se colocava numa posição incastrável, podia agredir o marido, a proprietária da casa onde morava, tomar calmante com bebida alcoólica, atender o celular durante a sessão e não aceitar as orientações dadas em relação ao filho. A morte e os impedimentos não faziam parte de sua realidade. Por seu turno o filho K. brigava na escola, sempre que pedia para ir ao banheiro criava tumulto, precisava ser contido e trazido de volta à sala pela professora.
A criança encoprética pode estar ocupando o lugar de dejeto da mãe. Em presença de pais que depreciam tudo, diminuem em valor ou mérito tudo, tudo é dejeto, é merda. As fezes são importantes no que elas apresentam de fálico. No discurso da mãe de K. o filho nada merece, desde fazer uma atividade esportiva a um programa feito pela escola de visitação em um parque.
Nossa intervenção visava transpor o acting, para retirar K. do caráter de merda. K. se utilizava de uma exacerbada agressividade como forma de denúncia à demanda de limpeza do outro, deixava assim, o sinal da falta nesse outro. Nos primeiros encontros com a mãe de K., esta não apresentava o menor sinal de angústia. A condição de dejeto do filho estava na ordem do discurso da mãe como uma sexualidade ameaçadora de si mesma e dos irmãos. Dizia não poder dormir sem a certeza de que o filho não estivesse em sono profundo e que precisava acordar bem cedo, antes do filho, pois, temia o assédio de K. aos irmãos. Havia claramente no discurso da mãe à inversão fálica dos objetos: banheiro = merda = masturbação exacerbada, pois não falava da encoprese e sim da sexualidade "ameaçadora" do filho transformada em emblema de um gozo excedente.
Na primeira sessão K. fez três desenhos do mesmo super-herói, cujo tórax era em formato de seta apontando para os genitais e pés em formato de ponta. Trazia uma faixa na cintura amarrada, as pontas caiam formando um pênis em estado de ereção, apagou com borracha várias vezes essa parte do desenho. Quando ia desenhar o primeiro super-herói me pediu que fizesse apenas a cabeça, o restante do corpo ele mesmo o faria. No segundo desenho fez o mesmo super-herói, a única diferença era que exibia um cabelo loiro em formato de escada até os pés. No terceiro desenho havia mudanças claras: olhos vendados e punhos cerrados, a faixa que havia sido desenhada erguida, não apresentava o menor sinal de elevação, não houve também o uso da borracha, o super-herói estava castrado.
A hora lúdica de K. era repleta de elementos denunciadores do lugar que ocupava em sua família e de seus desejos incestuosos pela mãe e irmã de onze anos. Ao dar início à sessão montou a cena de uma corrida de cavalo com o lobo. Os obstáculos utilizados foram vários lápis e uma porta canetas. A corrida foi acirrada, por um bom tempo foi uma disputa difícil, depois o lobo caiu entre a mesa e a parede; pegou-o e continuou a corrida, até transformar o cavalo em ganhador.
O excesso do gozo foi revelado também através de seu jogo com massinhas. Pediu ajuda para fazer vários animais como: elefante, vaca, cavalo, macaco e vários outros. Porém à parte que lhe cabia na confecção desses animais seria apenas o rabo e a orelha. Apontava para um deslocamento da mão pelo uso da masturbação para a orelha dos animais feitos no jogo com massinhas, o excesso do gozo aparece na confecção de vários rabos dos animais.
A inscrição de "merda que K. deixava como rastro" aparecia travestida no discurso de sua mãe e também em seu manejo com os brinquedos que escolhia para representa-los. Escolheu o jogo com figurinhas, convidou-me para jogar, virou várias delas. Quando percebeu minha falta de habilidade no manejo das figurinhas, hipotetisou que minha mão poderia estar molhada, portanto, me pediu para mostrá-la e tocou-a. Desejava marcar-me com sua angústia para poder sair da condição de dejeto?
K. mostrou também a dimensão da "merda em sua vida" e como gostaria de soltá-la em lugar privado. Quando chegou, espalhou alguns brinquedos e logo em seguida levou todo material gráfico para debaixo de uma mesa que se encontrava bem no cantinho da sala. Ali permaneceu até minha intervenção: sugeri que reuníssemos todos os objetos e levássemos para debaixo daquela mesa. Em outra sessão organizou sua caixa lúdica, acondicionou todos os brinquedos, o material gráfico, pegou a tampa, fechou a caixa, se dirigiu em direção à mesa que ficava no cantinho da sala e colocou-a bem no fundo em baixo da mesa. Indicava seu desejo por continência e por utilizar ambiente privado.
Os encontros que se seguiram com a mãe de K. esta se colocava descrente frente às possibilidades de melhoras em relação ao filho. Contou-me que arrumara um pretendente, este de forma solícita deu-lhe uma bicicleta para ser entregue ao K. O vislumbre de uma triangulação se apresentava até que a mãe de k. se recusasse com veemência em apresenta-lo aos filhos. Ao perguntar-lhe se havia algum motivo que poderia causar-lhe tal impedimento, não me revelou o estado civil do rapaz, apenas argumentou que não estava segura que esse relacionamento poderia durar, pois, ele morava em outra cidade.
A última sessão marcada para K. sua mãe demonstrou um certo atrapalhamento no cumprimento do dia e horário. Sua amiga em ligação telefônica justificou sua falta por impedimentos de ordem moral e civil, pois precisou ir até a delegacia para prestar queixa de agressão física. Marcamos outro dia e outro horário.
A marcação que a mãe de K. deixava era exatamente o sintoma da família através do rastro de dejetos do filho atuados na escola, na locadora e em casa. A impossibilidade de castração mostrava suas marcas nos locais onde o filho passava. Na última sessão de K. o mesmo mostrou sua fantasia e desejo de "cura", entregou-me sua caixa lúdica e disse: hoje é você quem guarda a caixa bem no fundo lá debaixo da mesa.
Para que houvesse a remissão dos sintomas de K. devemos considerar alguns fatores. Um deles foi o número de sessões, que por se tratar de Psicoterapia Breve em instituição numa situação de estágio, contava com um número preciso de sessões devido à carga horária pré-estabelecida pelo mesmo. Outro ponto muito importante foi a aderência da família ao tratamento.
As condições psíquicas da mãe denunciavam vários impedimentos. Para transpô-los precisávamos de um tempo maior. Parte dos conflitos de K. foram resolvidos, pois o espaço que lhe fora oferecido continha continência, atenção e aceitação incondicional. A inferência que fazemos sobre a importância do tempo em Psicoterapia Breve para remissão do acting da encoprese, teve como base parte da não remissão do acting apresentado pela criança durante o tempo previsto em contrato de dezesseis sessões, dessas foram realizadas devido às faltas, apenas onze. Sendo assim constatamos que a suficiência do mesmo se faz necessário para que ocorra êxito do tratamento do acting da encoprese.
Notas
Caso K- Atendimento realizado por: Miriam Araki
Referências Bibliográficas
FERREIRA, Márcia Porto, Transtornos de Excreção. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004, p. 76-137.
GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Freud e o inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p.42-112.
NASIO, Juan David. Introdução as obra de Freud, Ferenczi, Groddeck, Klein, Winnicott, Dolto, Lacan com as contribuições de A. -M. Arcangioli,...[et al.] Tradução: Vera Ribeiro. Revisão: Marcos Comaru. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995, p.37.
KUSNETZOFF, Juan Carlos. Introdução à Psicopatologia Psicanalítica, Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira,1982, p.45-148.
BRENNER, Charles. Noções Básicas de Psicanálise: Introdução à Psicologia Psicanalítica. Tradução: Ana Mazur Spira. Rio de Janeiro: Imago; 1987 p.49- 72.